O Retorno da Múmia

1 0 0
                                    

25 de dezembro de 2017. 8h30min.

Estava um dia ensolarado lá fora. E era aniversário do Fernando também. E... estava nevando. É. Talvez esse fosse o problema daquele dia: a neve. Estava nevando quando Fernando e eu quase fomos executados por Akamack. Estava nevando quando o Fernando foi raptado pela Rainha da Neve. E estava nevando naquela hora também, enquanto eu subia as escadas, em direção ao quarto do aniversariante do dia, com uma bandeja cheia de frutas e uma xícara de chá. Eu queria que aquele fosse o melhor dia da vida dele. Queria aproveitar o máximo com ele, porque... nós nunca passamos um aniversário seu juntos. Não de verdade. No primeiro ano em que estive na Terra da Imaginação, eu estava treinando com o Jano quando devia estar me divertindo com meu melhor amigo. No segundo ano, a Rainha da Neve decidiu estragar nossa alegria. No terceiro ano, eu estava com ele. Mas não do jeito certo. Estávamos numa cela, esperando para sermos executados e, no quarto ano, ele estava morto. E eu queria que, naquele ano, fosse diferente. Queria que aquele fosse o melhor aniversário que ele poderia ter, e eu faria de tudo para isso acontecer.
Entrando no quarto, deixei a bandeja no criado-mudo ao lado da cama.
- Bom dia. - Falei baixinho, sentando-me á cabeceira da cama. Uma de minhas mãos brincou com uma mecha do seu cabelo cor de ébano.
Em resposta, ele suspirou e abriu os olhos.
- Bom dia. - murmurou. Percebi uma nota de tristeza em sua voz.
- Ei... - sorri de modo tranquilizador - Ei, guerreiro, que foi?
Seus olhos verdes me fitaram dum jeito penetrante.
- Por... Por que sempre tem que nevar justo no meu aniversário? A neve... Eu não gosto da neve. Ela é fria... e molhada... e sempre me faz ficar resfriado... e... - hesitou - E ela sempre me faz lembrar a... - Seu corpo estremeceu visivelmente. Eu entendi a mensagem, mesmo que ele não tivesse completado aquela frase. E ela sempre me faz lembrar a Rainha da Neve. Eu também compartilhava daquele sentimento. Não gostava da neve. Mas eu não queria que aquilo nos atrapalhasse. Não naquele dia.
- Eu te entendo, querido. - disse eu - Eu também não gosto da neve. Mas não deixe isso abalar você. É seu aniversário!
Ele sorriu levemente.
- Valeu, Laíres.
- Por te lembrar que você tá um ano mais velho? De nada.
Isso o fez gargalhar. Meu coração se aqueceu quando percebi que eu conseguira afastar dele a tristeza.
- Não, mulher! Por isso não! - riu de novo - Valeu... - segurou minha mão e sentou-se na cama. Seus olhos brilharam - Por ser minha alegria de todas as manhãs. Estar com você é... O melhor presente que eu poderia ganhar.
Um sorriso dançou em meus lábios.
- Eu te amo, Fernando Mohamed Zaphenath Panea. Nunca se esqueça disso, entendeu? Aqui. - peguei a bandeja com comida e pousei em seu colo - Pode comer sem pressa. Depois tome um banho e vista-se. Você nem faz ideia do que os outros e eu preparamos para você no Jardim Escondido.
- Hum! - seu semblante se iluminou - O que é? - Perguntou enquanto mastigava uma uva. Aquilo me fez rir.
- É uma surpresa!
Ele fez biquinho e pegou mais uma uva.
- Ah, Laíres! Para! Você sabe que eu sou ansioso! - Então colocou a uva na boca.
- Eu sei.
Após tomar café, ele foi até o banheiro e fechou a porta. Sentada na cama, o esperei. Ouvi enquanto ele cantava lá dentro. Era uma música mais lenta dessa vez. Uma melodia lenta para combinar com a dose de melancolia que o frio trazia até ele (eu o entendia bem. No Mundo Sem Magia, os médicos chamariam a condição dele de "Transtorno Afetivo Sazonal", que é quando o frio te deixa deprimido. Eu, chamava aquilo de "Transtorno Pós-Rainha-da-Neve". O frio trouxe traumas ao Fernando. Traumas que ele ainda não superou), mas com uma letra que transbordava de gratidão. Gratidão por estar vivo. Gratidão por mais um ano de vida. Gratidão por ter uma família que o amava. A sinceridade na voz dele quase me fez chorar.
Quando ele abriu a porta, o olhei de cima a baixo. Um roupão cobria-lhe o corpo. Os cabelos longos estavam molhados.
- Essa foi... - sorri - A música mais linda que você já cantou.
- Obrigado, acho. - ele sorriu levemente - A verdade é que... eu não sei nem de onde tirei essa música. - riu baixinho, antes de começar a enxugar o próprio corpo. Seus cabelos pingavam intermitentemente. Quando acabou, olhou para o tecido dobrado em minhas mãos. Em vez do roupão, agora havia apenas uma
tanga branca cobrindo-lhe as partes íntimas, o que certamente justificava o fato dele estar tremendo - O que é isso? - indagou, abraçando-se.
- Um presente. - Respondi, entregando-lhe a túnica - Na verdade, são dois presentes. Mas este é o primeiro.
Ao examinar a vestimenta, ele perdeu o fôlego.
- Isso é... Esta é... É a túnica mais linda que eu já vi! Meu Deus! Estes detalhes! E estas cores! E é tããão macia! E é quentinha! - eu ri quando ele abraçou a túnica, como se ela fosse um ursinho de pelúcia. Então, parecendo ansioso para saber como a roupa ficaria nele, vestiu-a: era uma túnica de algodão, cujas cores se misturavam entre um azul escuro e um laranja fogo. Os traços coloridos davam a impressão de que estavam se movendo, como se fossem o reflexo do sol poente no mar azul. O capuz que havia nela contava com alguns detalhes dourados que combinavam com o cinto em volta da cintura do músico - Eu adorei! Nem tô mais sentindo frio!
- Você está tão lindo... - elogiei, tirando-lhe o capuz e penteando-lhe os cabelos - Ficou perfeita em você. - E levantei novamente seu capuz, cobrindo boa parte dos seus cabelos de ébano.
- Você a fez? - Quis saber.
- Não. - falei rindo - Foi o Jano.
Aquilo o fez rir alto.
- O Jano? Jura?! Desde quando ele costura?
- Nunca duvide dos nossos dotes, garoto! - disseram duas vozes familiares. Aí, o deus de duas faces surgiu em nosso meio. Dessa vez, ele usava um casaco de pele preto e uma calça da mesma cor.
- Jano! - o abracei apertado e beijei a face direita. A face esquerda nunca deixou que eu o beijasse. Nunca gostou muito de demonstração de afeto, embora gostasse de mim - O que você tá fazendo aqui?
- Viemos desejar felicitações ao aniversariante, ué! - A face direita riu.
- Não podemos? - A esquerda estreitou os olhos tempestuosos e caleidoscópicos.
- Obrigado, Jano. - Fernando agradeceu - Eu realmente adorei isso aqui.
- Agora... - peguei outro pacote que estava em cima da cama - Eis aqui o segundo presente. Este, todos nós fizemos. O Jano aqui, - apontei para o deus, que se sentara na cama ao meu lado - o Mestre Vigart, o Backnamut, o Will, o Filipe e eu.
- Uh! - o músico examinou o pacote com curiosidade - O que é? - e começou a abrí-lo, até descobrir o que tinha dentro.
- E aí? - Comecei a rir ao ver sua expressão de surpresa e alegria - Gostou?
- Tá de brincadeira? - ele riu e abraçou o livro em suas mãos - É um livro de partituras dos Sem Magia! Um livro de partituras dos Sem Magia! - saltitou - Eu não acredito! Não acredito! Não acredito!
Jano e eu rimos da sua empolgação.
- Eu selecionei as músicas e reuni as partituras, - expliquei - Jano e Backnamut cuidaram do design da capa, Filipe e Will uniram as folhas à capa, e o Mestre Vigart deu o toque final.
- Toque final? - Zaphenath franziu o cenho.
- Este, rapaz, - a face esquerda explicou-lhe - Não é qualquer livro de partituras. Aqui, além de você poder ler e tocar as músicas... - o deus fez um sinal para que o menestrel abrisse o livro. Ele o abriu, e a música escrita na primeira página começou a tocar: Bring me to life.
- ... Você também poderá ouvi-las. - Concluiu, sorrindo, a face direita.
- Isso é tão lindo... - Fernando fechou os olhos por um instante - Esta música me... acalma.
- Eu sei. - sorri ao me lembrar como, durante os nove meses, sua respiração ficava mais tranquila quando eu cantava para ele - Vamos, pessoal. - chamei - Vamos ao Jardim Escondido. As surpresas ainda não acabaram.
- Sim! Mas... Podemos ir á biblioteca primeiro, Laíres? Quero guardar meu livro num lugar bem seguro, para que depois eu possa apreciá-lo.
- Deus. - reprimi o riso - Eu virei amiga de um devorador de livros disfarçado de músico.
- Que foi? - ele sorriu - Eu gosto de livros tanto quanto gosto de música.
- Sei disso. - tomei-o pela mão - Pode ir para o Jardim se quiser, Jano. Chegaremos logo.
- Até daqui a pouco, então. - Disseram as duas faces, antes dele sumir.
● ● ●

As Aventuras de Laíres e Fernando na Terra da Imaginação: Do Fim ao Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora