Por Detrás das Claras
Ana Eulália Borges Faria
Era uma noite brusca, típica das que trazem questionamentos sobre a tranquilidade do mundo exterior. A emergência assemelhava-se a uma zona de guerra, repleta de uma correria abrupta e de desespero palpável entre os pacientes. Os cenários mudavam de forma súbita, pegando a todos de surpresa. Era o Dia das Crianças, e a comunidade estava em festa, até a invasão policial desmoronar tudo. Soube que, algumas ruas acima, havia uma confraternização com bolos e brinquedos, celebração destinada aos pequenos moradores da comunidade e financiada pelo tráfico — uma festa que se transformou em caos.
Eu estava assoberbada, atendendo pacientes um após o outro, fazendo curativos e administrando sedativos, quando o tumulto irrompeu no hospital. Um dos traficantes procurados havia se infiltrado na UPA, em busca de refúgio, e a polícia estava prestes a invadir.
Como médica residente, coloquei-me à frente, decidida a restaurar a ordem. Aquele não era um ambiente adequado para começar uma troca de tiros, me custava acreditar que seriam capazes de iniciá-lo ali.
Minhas palavras chamaram a atenção de um homem de alta estatura, de postura firme e olhar impiedoso, parecendo guardar uma história difícil de ser resolvida. Bonito, havia uma barba por fazer, mãos cuidadas e porte atlético, mas armado até os dentes, que irrompeu pela porta, segurando um fuzil e apontando-o diretamente para mim.
— NINGUÉM VAI SAIR! FICA TODO MUNDO QUIETINHO! NÃO VAI SAIR NINGUÉM ATÉ EU PEGAR O FILHA DA PUTA! — Ele bradou com uma voz grossa que ecoava como uma sentença, deixando todos atordoados.
— O senhor precisa respeitar as vidas que estão aqui! — retruquei, tentando infundir seriedade na minha voz, embora estivesse apavorada. — Não interessa se o procurado está aqui dentro. O senhor não pode pôr essas vidas em risco!
Ele abaixou a mira do fuzil, os olhos queimando com um desdém calculado.
— Olha aqui, doutora, não vim para ficar de conversinha. Eu quero é o vagabundo, e eu vou pegá-lo! E se alguém se meter no meu caminho, pode ter certeza de que não vai sair daqui vivo! — O homem disse, rindo, com uma gélida certeza nos olhos.
— Não posso permitir que vidas inocentes paguem por um problema que é exclusivamente de vocês! Crianças estão aqui dentro, idosos apavorados. Vocês não podem continuar! — Insisti, sentindo a adrenalina pulsar como um tambor no meu peito.
Ele se aproximou, o hálito de menta emanando de sua boca fazendo meu estômago revirar.
— Olha só... — Ele segurou meu queixo com desdém. — Ninguém mandou abrir uma UPA numa favela. Agora, quem tiver a chave do elevador vai me entregar, e aí eu vou subir, sem que ninguém mais me atrapalhe, entendeu? — Ele reposicionou o fuzil em minha direção e deu um passo mais perto, sua presença esmagadora e ameaçadora. — A doutora é corajosa, mas também bem bobinha, não consegue ver que tá no lugar errado, na hora errada?
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Por Detrás Das Claras | Chay Suede e Alanis Guillen
ChickLitDra. Ana Eulália é uma médica dedicada e autônoma, que trabalha na linha de frente de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em uma região periférica do Rio de Janeiro. Sua vida é dedicada a salvar vidas e lutar contra as injustiças sociais, o que...