Capítulo 6

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Mesmo de banho tomado e barriga cheia não consigo evitar a frustração. O que me faz sentir culpada, quando eu estaria tão bem nos últimos anos? Mesmo sem minha mochila nova estou comendo uma boa refeição e lavada. Não deveria ter motivos para reclamar, mas, ainda assim, não consigo conter a raiva que surgiu em relação a Gilbert Blythe.

Matthew e Bash conversavam tranquilamente, evidentemente ignorando o clima pesado que a minha carranca indomável criou. Gilbert me olhava de vez em quando, entre garfadas ou goles de suco, provavelmente tentando medir a minha raiva, o que só estimulava o meu inconciente a expressar meus sentimentos.

Em determinado momento Bash se levanta, se espreguiçando.

-Acho que vou guardar as sobras. Gilbert, porque não leva Anne e Matthew para Green Gables?

Mattew, aquela altura já estava ao lado da porta ajeitando seu chapéu na cabeça, e prefere fingir que não ouviu o incentivo de Bash para que eu perdoe Gilbert depois de uma atitude bondoza. Me levanto ignorando como me sinto ridícula com esse conjunto de roupas que Bash me emprestou.

Estou calçando meus tênis quando Gilbert pega as chaves do Impala e coloca um par de chinelos nos pés. Assim que Matthew pisa na grama o sigo e quando vejo o carro apresso o passo para chegar logo. 

Quando olho para baixo vejo a calça moletom suja na barra, definitivamente terei que lavá-la várias vezes para devolvê-las limpas.

Entro no banco traseiro imediatamente.

-Vocês estão tendo problemas com uma rapoza por aqui? -Matthew corta o silêncio, o carro já na estrada de terra.

-Não, faz um bom tempo que nenhuma aparece.

-Faz algumas semanas que os ovos vem sumindo, alguns dias atrás uma das galinhas apareceu morta.

-Sério? Já tentou cercar o galinheiro?

-Duas vezes, em todas o bicho conseguiu entrar.

-Que estranho.

-Pedi para que Anne viesse para caçarmos a raposa, acabar com isso logo.

Isso me chama atenção, definitivamente não teria coragem de matar sequer uma mosca.

-Você quer que eu mate algo? -Indago, me inclinando no banco para olhar Matthew no rosto.

-Não necessáriamente, só não consigo pegar ela sozinho.

-Posso ficar se quiser, definitivamente tenho mais experiência do que Anne nessas coisas.

-Você já é muito oocupado, com todos os estudos e a fazenda.

-Você e Marilla me ajudam muito, com tudo o que preciso, vou ajudar de bom grado.

Relaxo no banco, melhor assim. Não consigo me imaginar numa situação dessas.

Em poucos minutos Gilbert para o carro na frente de um porteira e puxa o freio de mão, antes de descer e abrir a passagem.  Logo ao lado um celeiro pequeno tem a cor vermelha fraca e desgastada pelo tempo, e acima de uma pequena colina uma casa branca de janelas verdes chama atenção.

Gilbert leva o carro colina acima, e nisso noto o galinheiro no qual Matthew comentou, mesmo sendo ignorante sobre tudo o que envolve campo é evidente as diversas reformas que aquilo levou, há pelo menos três tipos de arames cortados e mais ou menos dois tipos de madeiras na construção.

Todos descemos do carro e nnos aproximamos do galinheiro.

-Tem alguma ideia de para onde a rapoza pode viver?

-Para o sul da floresta. Tentei ir atrás dela semana passada, a vi entrando para lá.

-Vamos esperar o anoitecer, vou ficar vigiando da janela.

(...)

Durante as próximas cinco horas Gilbert e Matthew preparam tudo quanto é tipo de armadilha para espalhar por toda a área. Para que eu não fique sem fazer nada, Matthew me indica onde devo colocar tudo, o que me rende uma boa caminhada.

Quando escurece Gilbert e Matthew colocam duas cadeiras na frente da janela da cozinha e montam guarda.

Desde então fiz minha lição de casa, tirei o pó do quarto extra que Matthew disse que vou passar a noite e vasculhei as prateleiras de livros procurando alguns para levar.

-Onde fica o banheiro? -Vejo no relógio e é quase onze da noite, Gilbert e Matthew não sairam dali desde cedo.

-Do lado de fora, lado esquerdo da casa.

Enrugo as sobrancelhas.

-Certo. Sem chances de eu me perder?

-Não. Na primeira gaveta ao lado da pia tem uma lanterna, é bem escuro até o banheiro.

Encontro a lanterna onde Matthew indicou e sigo meu caminho pela porta da cozinha, só de passar na frente do galinheiro fico receosa de encontrar uma raposa raivosa degolando uma galinha.

Como foi dito a única luz em quilometros é a da lanterna e infelizmente ela não é de longo alcance, me facilitando a vista de no máximo dois metros de chão. Menos de dois minutos depois vejo onde provavelmente é o banheiro, uma pequena construção com uma porta de madeira desgastada. Ao entrar vejo que é a mistura do banheiro com armário de pás e outras coisas que se usam na terra.

Apesar da terra no chão tanto o chuveiro como o vaso estão limpos, o que me deixa mais segura de usar.

Enquanto volto para escuto um barulho vindo da minha direita, onde sei ficar as plantações e quando movo a luz da lanterna na direção do som não consigo ver nada, até que de repente dois olhos brilhantes surgem no breu.

Não sei se deveria correr, mas não conseguiria de qualquer forma. A raposa sai de dentro das folhagens e o laranja vivo de seu pelo se destaca na luz branca da lanterna.

Ela me olha nos olhos e levanta as orelhas antes de inclinar a cabeça e correr para longe. No mesmo instante escuto um barulho de tiro no pé do ouvido e dou um pulo para trás, vendo Gilbert segurando uma espingarda.

-Gilbert! Não mate ela!

Ele pega a lanterna da minha mão, e só ai percebo que ele veio até aqui no competo escuro.

Por sorte a rapoza já desapareceu, não conseguiria presenciar a morte dela.

-Droga. Foi por pouco.

-Achei que vocês só iriam matar ela se fosse necessário!

Ele me olha indignado.

-Acho que a garotinha da cidade não entendeu o que iria acontecer! A rapoza iria te atacar!

-Não exagere! Ela só estava me olhando! Você é o errado!

-Se você acha que vou pedir desculpas por salvar a sua vida então está completamente enganada.

O que faço em seguida não é de se orgulhar.

Pego a lanterna de sua mão e bato com ela na cabeça de Gilbert,  fazendo ela parar de funcionar na mesma hora e mergulharmos no escuro completo.

-Ai!

Mesmo sabendo que foi uma atitude infantil não cedo ao orgulho, apenas bufo. Segundos se passam, talvez até minutos, de silêncio onde não sei como Gilbert está reagindo a minha atitude. Já teria batido o pé de volta para a casa se eu tivesse o mínimo de senso de direção nessas circunstâncias.

Gilbert definitivamente nota meu descontentamento porque consigo escutar uma risada anasalada a minha frente.

-Vamos.

Ele segura a minha mão e começa a andar, não tenho alternativa se não o seguir em silêncio e aceitar esse contato repugnante com alguém tão rude.

Quando a luz da casa permite que eu tenha visão de onde estou pisando me solto de Gilbert e corro para dentro da casa, diretamente para o quartinho que organizei mais cedo para passar a noite.

Não sairei daqui tão cedo e se depender de mim Gilbert Blythe poderia desaparecer.





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