Começara mais ou menos da seguinte forma: Edgar, parado, alheio a um cenário peculiarmente familiar; as paredes erguiam-se altas ao seu redor, comprimindo-o para dentro da caixa de seus pensamentos mais sombrios.
Era escuro. Ele estivera naquela escuridão antes, fazia parte dela e ela dele.
De repente surgira-lhe um clarão na vista, vindo de cima, e sua cabeça doía, uma dor de romper o crânio, e do chão emanava um aroma pungente de sangue.
No início, foi somente isso. E bastava para que ele se sentisse incomumente assustado.
Um burburinho de vozes atrelava-se a esta cena nada meticulosa. Como se o lugar estivesse cheio de pessoas, conhecidas, balançando-se e deslizando nas tênues linhas da memória inconsciente. As vozes tinham sorrisos, formas figuradas, e ao mesmo tempo eram invisíveis.
De repente, um estrondo que calou a todos os murmúrios; um rasgo metálico, algo quente colidindo em meio ao frio do nada contra algo desconhecido.
E então Edgar acordou sobressaltado, suando frio. Tinha certeza de que fora um pesadelo. A pele sob o pijama sofria com a palpitação nervosa e agitada. A dor de cabeça perdurou mesmo após o sono.
Algumas agulhadas irritantes de tontura o desconcertaram, mas pouco tardou para que ele se recompusesse. A branda quietude era o mais marcante, por mais que este fosse o comum para o lugar, Poe intrigou-se: ainda não deveria ser o horário em que costumava acordar; era muito mais cedo, talvez o meio da madrugada. Ele moveu-se mecanicamente para fora do calor de seus cobertores, atônito, e na leveza de passos cautelosos, foi à janela. Empurrou o suave tecido da cortina para o lado, as linhas costuradas fazendo cócegas na palma de sua mão, e espreitou um olhar para fora: a coloração do céu assumia um aspecto aguado, como tinta cinza lavada do pincel de algum artista, mas de tons mais pesados e mórbidos: o sol passara de algumas horas de sua despedida, e dentro de mais outras estaria lá para cumprimentar-lhe novamente. O jardim resumia-se encerrado num silêncio enevoado, sem alma viva a passar por ali --nem mesmo Ranpo. Que tolice, afinal, pensar que àquela hora alguém estaria acordado!
Em sua face contorceu-se uma expressão desapontada. Seus cabelos provavelmente estavam uma bagunça espantosa, e sentia o peso das olheiras aterrarem o formoso detalhe daquele rosto que possuía... desde quando achava seu rosto bonito?! Talvez alguém tenha lhe dito isso alguma vez.
Ignorou o pensamento, que correu-lhe para fora da mente como uma áspera nuvem no céu. Ponderou sobre voltar à cama e tentar dormir de novo, mas sabia que a ideia era inútil e não surtiria efeito. Concluiu, solitariamente, que esperar o tempo passar era a única opção. Bem, não diferia muito da vida que levava a cada dia, portanto precisava apenas conformar-se à ideia. Como sempre tinha de fazer.
Somente o fato de olhar para o lado de fora dentre as paredes do quarto que conservavam o calor do corpo, era perceptível o amanhecer tardio ser tão gélido a ponto de estremecerem as pobres flores silvestres encurvadas despontando de suas frágeis hastes.
Movido então por uma nunca antes sentida vontade de experimentar daquele ar puro tão fresco do prelúdio da manhã, Poe tomou-se pela iniciativa de já se vestir adequadamente com suas habituais roupas, acomodando os pés nos tênis Coca-Cola; a mistura de sensações dentro dele, a batalha frenética entre a melancolia da solidão do horário e o impertinente e imprevisível desejo de ter na pele a intensidade dessa mesma solitária frieza, não fornecia trégua. Tomou em mãos o livro.
Ao que foi dirigir-se à porta, hesitou por um segundo, olhou por cima do ombro e com um sorriso fraco murmurou para Karl:
-Bom dia, amigo.
Saiu pelo corredor, sem economizar no cuidado para manter inviolável o silêncio que flutuava pelo prédio. Seus passos na escada ecoaram de modo fraco, e um suspiro de alívio escapou-lhe quando atingiu o andar térreo sem se deparar com ninguém. Principalmente por não ter visto sequer a sombra de Yosano por perto.
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⋆°• Lovely Memories⋆⁺₊ ~{Ranpoe♡}~
FanficEdgar Allan Poe não consegue se lembrar de absolutamente nada do seu passado além das informações básicas. Seu nome, sua caligrafia, as coisas que aprendera na escola, bem como detalhes românticos da vida que ele não faz ideia de onde aprendeu; o me...