Eu já estava de saco cheio de ser o alvo das fofocas da cidade. Toda vez que passava pela praça, lá estava Dona Dulceneia com o dedo apontado e a língua mais afiada que faca de açougueiro, pronta para espalhar algum boato novo sobre mim. Se não era sobre a bananeira, era sobre minha vida amorosa (ou a falta dela), ou até sobre o Zezinho, o papagaio fofoqueiro que ela jura de pé junto que ensinei a falar mal dela.
Uma manhã, depois de ouvir o Zezinho repetindo um "Dona Dulceneia tá dando em cima do padeiro" que não deixava dúvidas de onde ele tinha tirado, decidi que já era hora de dar o troco. Se era fofoca que ela gostava, fofoca ela ia ter. Só que dessa vez, a história seria sobre ela.
Sentei na minha cadeira de balanço, olhando o Zezinho na gaiola.
— Escuta, Zezinho. Hoje a gente vai brincar de inverter os papéis.
Ele me olhou de lado, com a cabecinha inclinada, como se já soubesse que estava prestes a aprender algo novo.
— Amanhã, quando alguém passar por aqui, você vai dizer que a Dona Dulceneia tá apaixonada pelo Joaquim da farmácia. Entendeu?
— Dulceneia apaixonada! Dulceneia apaixonada! — ele repetiu, animado.
Aquilo me fez rir, já imaginando o caos que isso ia causar. A velha fofoqueira, que vivia de olho na vida dos outros, ia experimentar o gostinho amargo de ser o centro das atenções. E eu ia me divertir com isso.
No dia seguinte, fiz questão de passar na praça e dar uma paradinha perto da rodinha de senhoras, onde Dulceneia reinava como a grande matriarca das fofocas.
— Bom dia, meninas! — eu disse, sorrindo com a inocência de quem não tinha nada a ver com a confusão que estava para começar.
— Bom dia, Rafaela! — responderam, sem muita animação. Já sabiam que eu era o alvo preferido de Dulceneia, então sempre ficavam um pouco desconfiadas quando eu aparecia.
Dona Dulceneia, com seus olhinhos miúdos brilhando de curiosidade, não perdeu tempo.
— E aí, Rafaela, novidades? Alguma confusão com a fábrica nova? Ou quem sabe com o Rodrigo da academia? — disse ela, com a voz cheia de malícia.
Segurei a vontade de revirar os olhos e fingi que não percebia o veneno nas palavras dela.
— Ah, nada de mais, Dona Dulceneia. A senhora que deve estar cheia de novidades, não é? Andei ouvindo uns boatos por aí...
Ela franziu o cenho.
— Boatos? Que boatos?
Fiz cara de quem sabia mais do que deveria, porém, que estava relutante em falar.
— Ah, não sei se devo... não quero criar confusão. Mas... dizem por aí que a senhora anda de olho no Joaquim da farmácia.
O silêncio que se seguiu foi glorioso. As senhoras ao redor dela ficaram de boca aberta, sem saber como reagir. Dulceneia, por sua vez, ficou vermelha como um tomate.
— O quê?! Quem foi que disse isso? — ela estava quase ofegante.
— Ah, isso eu não posso dizer. Só sei que ouvi por aí. Sabe como é, a cidade é pequena, todo mundo sabe da vida de todo mundo. Mas não liga não, Dona Dulceneia. Às vezes, as pessoas exageram. Só porque a senhora sempre passa lá na farmácia, né?
Ela parecia prestes a explodir. Aquele rostinho de quem se deliciava com as fofocas dos outros estava distorcido em puro horror. Contudo, como boa fofoqueira que era, ela sabia que, quanto mais reagisse, mais daria corda ao boato.
— Isso é um absurdo! — ela finalmente disse, tentando manter a compostura. — Eu passo na farmácia porque preciso comprar remédios! Só isso!
— Claro, claro, entendo perfeitamente. Só estou dizendo o que ouvi. Mas é assim mesmo, Dona Dulceneia. Quando a gente menos espera, já virou conversa. E você sabe, ninguém está imune, né?
Ela me olhou com uma mistura de raiva e medo. Eu podia ver nas entrelinhas que, naquele momento, ela se deu conta do poder que uma fofoca podia ter, especialmente quando era ela o alvo. E eu? Ah, eu estava me divertindo horrores.
Passei a tarde ouvindo o Zezinho repetir a frase "Dulceneia apaixonada", até ele mesmo dar risadinhas. A cidade começou a ferver com a fofoca. Todo mundo que eu encontrava na rua cochichava sobre o suposto romance entre a velha fofoqueira e o pobre Joaquim. Coitado, nem sabia o que estava acontecendo.
No dia seguinte, as coisas já estavam fora de controle. Quando fui na vendinha comprar umas coisinhas, ouvi duas senhoras falando:
— Eu sempre achei que a Dulceneia era mais quieta. Quem diria que ela tinha um caso com o Joaquim!
— Menina, e o marido dela? Já ficou sabendo? Dizem que ele quase desmaiou quando soube!
Aquela última parte era uma completa invenção, claro, mas é assim que as fofocas funcionam. Elas crescem e viram algo muito maior do que o original. Fiquei imaginando a cara de Dona Dulceneia em casa, tentando explicar para o marido que aquilo era tudo mentira. E, pela primeira vez em meses, eu estava livre das línguas afiadas da cidade.
Mais tarde, quando voltei para casa, encontrei Natália sentada na varanda, esperando por mim.
— Rafaela, o que foi que você fez? — perguntou, já rindo.
— Eu? Nada de mais. Só dei um empurrãozinho no karma.
Ela balançou a cabeça, tentando esconder o sorriso.
— A cidade inteira tá falando disso, menina. O Joaquim já disse que vai pedir pra Dulceneia se explicar publicamente. O marido dela foi até na delegacia perguntar se fofoca é crime!
— Olha, só posso dizer uma coisa... — respirei fundo, preparando a frase de efeito. — Bem-vinda ao meu mundo, Dulceneia!
Natália riu alto, mas me deu um olhar de quem sabia que aquilo ia dar mais confusão.
— Você não acha que exagerou?
— Exagerei nada. Ela me infernizou por meses. Agora é a vez dela. Se não quiser que as pessoas falem da vida dela, que pare de falar da dos outros. Estou cansada dessa velha fofoqueira.
Enquanto o Zezinho repetia "Dulceneia apaixonada" ao fundo, eu sentia uma satisfação imensa. A cidade estava de cabeça para baixo, e pela primeira vez, eu estava fora da tempestade, assistindo de camarote.
E quer saber? Eu estava adorando cada segundo.
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Debaixo Da Bananeira
HumorEm uma pequena cidade cearense, Rafaela Pereira luta com unhas e dentes para salvar uma bananeira plantada por seu pai antes de falecer, ameaçada pela construção de uma nova fábrica. Daniel Correia, o dono da fábrica, fica fascinado pela teimosia da...