Daniel Correia
Eu estava na loja de materiais de construção, tentando me concentrar nas prateleiras cheias de parafusos, tintas e cimento. Precisava garantir que a obra da fábrica seguisse o cronograma. A última coisa que eu queria era mais confusão.
Enquanto eu conferia a lista de compras, senti alguém se aproximando com aquele jeito de quem já vem com veneno na língua. Quando olhei para o lado, lá estava Dona Dulceneia, a maior fofoqueira da cidade. Ela abriu um sorriso exagerado, fingindo simpatia. Em todos os lugares existiam pessoas fofoqueiras, no entanto, naquele interior parecia ter bem mais.
— Bom dia, Daniel! Que coincidência boa te encontrar aqui! — disse ela, já puxando conversa como quem não queria nada. Mas eu sabia que ela sempre queria.
— Oi, Dona Dulceneia. — respondi, sem muita empolgação, voltando a olhar para a lista, na tentativa de cortar a conversa antes que começasse de verdade.
Ela deu uma olhada rápida ao redor, como se estivesse prestes a me contar o segredo mais bombástico do século. Eu podia sentir o cheiro da fofoca no ar, e, honestamente, não estava com a menor paciência.
— Sabe, Daniel, eu andei ouvindo umas coisas... E como sou uma pessoa muito preocupada com o bem-estar dos outros, achei que deveria te avisar. É sobre aquela Rafaela. — ela abaixou o tom de voz, como se estivesse prestes a soltar uma bomba.
Revirei os olhos internamente. Já sabia onde isso ia dar, mas resolvi ouvir para ver até onde ela iria.
— Ah, é? E o que exatamente a senhora ouviu? — perguntei, tentando não parecer tão entediado quanto estava.
Ela deu um sorrisinho, como se estivesse prestes a me salvar de algum grande erro.
— Olha, meu filho, eu sei que você é novo na cidade e não conhece a história toda, mas essa Rafaela... Não é moça de família. É o que todo mundo diz. Rodada, sabe? Não acho que você deveria se envolver com uma pessoa assim. Não combina com a sua reputação, e eu, como uma boa mulher, achei que deveria te alertar.
Meu sangue começou a ferver. Quem essa mulher pensava que era para falar assim de Rafaela? E na minha frente? Eu sabia que Rafaela era teimosa, porém, era uma pessoa genuína, forte, que enfrentava qualquer um de cabeça erguida, inclusive eu. E aí estava Dulceneia, julgando ela por... O quê? Por existir?
Respirei fundo e me virei para encarar Dulceneia de frente.
— Dona Dulceneia, a senhora me desculpe, mas quem a senhora pensa que é pra falar assim da Rafaela? — minha voz saiu firme, talvez um pouco mais alta do que eu pretendia. Os poucos clientes ao redor começaram a olhar, contudo, eu não me importei.
Ela piscou, surpresa com minha reação, mas logo se recuperou e tentou manter a pose.
— Eu só estou tentando ajudar, Daniel. Todos na cidade falam dela desse jeito. É para o seu próprio bem, sabe? Não quero ver você se envolvendo com alguém que possa manchar sua reputação.
Eu ri, mas sem humor.
— Cuidar da minha reputação? Eu posso cuidar muito bem da minha vida, obrigado. E a senhora devia cuidar da sua também. Porque até onde eu sei, a senhora passa mais tempo espalhando fofocas do que se preocupando com sua própria casa. Se tem alguém aqui manchando reputação, é quem fica inventando coisas sobre os outros.
O sorriso falso dela desapareceu, e eu continuei, sem dar espaço para ela interromper.
— Rafaela pode ser muitas coisas, mas o que ela não é, é "rodada" ou qualquer outro adjetivo que a senhora queira usar. Ela é uma pessoa de verdade, com mais coragem do que a maioria aqui nessa cidade. Então, se a senhora está tentando manchar a imagem dela pra mim, esqueça. Não vai funcionar.
Dulceneia ficou pálida, mas tentou se manter firme.
— Daniel, eu só...
— Não. — cortei, levantando a mão. — Se a senhora realmente se preocupasse, não estaria aqui falando mal dela pelas costas. Estaria perguntando como ela está, o que ela pensa, o que ela sente. E acredite, ela sente muito mais do que qualquer um de nós imagina. Na sua idade, ao invés de fazer algo útil, fica espalhando fofocas por aí. Deveria sentir vergonha, sabe?
O silêncio que seguiu minhas palavras foi quase ensurdecedor. Dulceneia me olhou, claramente sem saber como reagir. Eu não ia deixar ela sair fácil dessa.
— Então, com todo o respeito, cuide da sua vida, Dona Dulceneia. Porque da minha e da Rafaela, eu cuido.
Ela deu um passo para trás, como se tivesse levado um tapa invisível, e murmurou algo como "não precisa ficar nervoso" antes de se afastar rapidamente. Fiquei ali, parado por um momento, respirando fundo. A raiva ainda fervia em mim, entretanto, o sentimento de satisfação de ter colocado aquela mulher no lugar era inegável.
Voltei a pegar os materiais que precisava, porém, minha cabeça estava longe. Dulceneia tinha falado sobre reputação, mas o que realmente me incomodava era que, mesmo depois de todo esse tempo, ainda existiam pessoas na cidade que enxergavam Rafaela daquela forma. Como se ela não tivesse o direito de ser quem era. Como se não tivesse o direito de viver sem ser julgada.
E a verdade era que, desde a festa, desde aquele beijo, eu não conseguia tirar Rafaela da cabeça. Jantar com ela e beijá-la outra vez me deixou muito feliz. Ela me desafiava, me irritava, e, ao mesmo tempo, me atraía como ninguém mais. O jeito que ela lutava por aquela bananeira, como se fosse a coisa mais importante do mundo, me fazia ver algo nela que ia além do que qualquer fofoca poderia dizer.
Eu sabia que a cidade inteira estava falando de nós dois depois da festa. Sabia que o boato de que tínhamos passado a noite juntos já estava correndo por todos os cantos. Mas, para ser honesto, eu não ligava. O que importava era o que eu sabia sobre ela. E o que eu sentia.
— É, Daniel parece que você foi fisgado... — murmurei, sorrindo.
Eu saí da loja com a certeza de que estava cada vez mais envolvido. E, pela primeira vez, isso não me assustava.
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Debaixo Da Bananeira
UmorEm uma pequena cidade cearense, Rafaela Pereira luta com unhas e dentes para salvar uma bananeira plantada por seu pai antes de falecer, ameaçada pela construção de uma nova fábrica. Daniel Correia, o dono da fábrica, fica fascinado pela teimosia da...