"Não é que eu queira reviver nenhum passado..."

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Chegamos ao dia do meu casamento. A promessa iria se cumprir. Nós tínhamos projetos para um futuro juntos: uma grande empresa, um bom negócio. Eu nem sequer lembrava como a voz de Olivia soava. Isso era triste, mas o tempo cicatriza até as mais profundas feridas. Só temos que parar de cutucá-las. Eu e Barry estávamos juntando as coisas para arrumar o caminhão; íamos nos mudar para o Rio de Janeiro. Tínhamos um apartamento juntos em São Paulo e agora estávamos colocando tudo em caixas. Aos poucos, eu me despedia da vida paulista, da avenida, da casa do condomínio. Eu cresci. E isso foi bom; eu deixei de chorar antes de dormir por alguém que eu mandei embora e parei de me culpar também. Mudar para o Rio foi uma das melhores escolhas que já fiz. Deixei em São Paulo todas as lembranças, todas as esquinas que me lembravam ela. Mudar foi o passo final para me perdoar por tê-la mandado embora.

A última coisa que faríamos antes de nos mudarmos seria o casamento. Depois de colocar tudo em caixas, eu e Barry começamos a fazer os convites. Todos os nomes de convidados seriam escritos à mão, então lá estávamos nós dois, bebendo vinho em copos de plástico (Olivia me mataria se soubesse) e com canetinhas prateadas e douradas espalhadas na mesa, junto com um caderno com a lista de convidados. Uma música qualquer tocava no fundo, a mesa estava cheia de papéis: convites feitos, convites para fazer, lista de compras para depois da mudança, lista de presentes. Barry assinava mais um nome no convite e riscava da lista. Seu cabelo estava grandinho; sorri. Ele pegou o copo de vinho e deu um gole, devolvendo o copo para a mesa.

- Acha que devemos convidar o irmão do Louis? - Ele perguntou, focado na lista de convidados, como se procurasse o nome. - Tipo, a gente mal o conhece, o Louis quase não tem contato com ele, e mesmo que ele tenha voltado pro Brasil... sei lá.

- Acho que não... - Dei de ombros. - Não faz muito sentido também. O Louis não tem contato com o pai dele, nem com o Percy. A mãe dele também já não liga muito. E pelo que o Louis conta, o Percy é bem babaca... - Falei, sem me importar muito. Os pais do Louis tinham se separado quando ele tinha 12 anos, e o pai, Marcos, tinha conseguido a guarda do Percy. Eles se viam pouquíssimas vezes no ano.

Marcos e Percy moravam na Itália até o ano passado, quando retornaram ao Brasil por um motivo que eu ainda não conhecia. Acho que o pai dele, um empresário, tinha sido acusado de lavagem de dinheiro e fugido do país para não cumprir pena. Eu tinha pena do Percy, que cresceu com um homem tão tóxico. Porém, ele sempre foi um pai presente. Nunca faltou nada para ele. Mas mesmo assim, a educação que ele recebeu era péssima. Suspirei. Peguei o próximo convite, anotando o nome no automático: Olivia Isabel Rodrigo. No cantinho do convite, anotei que adoraria a presença dela e que gostaria de conversar. Num momento de ousadia e alteração pelo álcool, acrescentei: "o cala-se para sempre é às 8:24". Eu sabia o horário mais ou menos, porque eu e Barry tínhamos todo o tempo planejado.

I Want to Break Free" começou a tocar. Sorri, mordendo a boca, e me levantei com meu copo. Barry me olhou como quem sabia o que eu iria fazer. Aumentei o volume, fazendo a guitarra ecoar pelo cômodo. Me aproximei dele, com o controle do som na mão. Ele sorria de cantinho, com a covinha aparecendo. Comecei a mexer os ombros no ritmo da batida. Sorri, eu sabia que ele queria cantar comigo, mas ele se fazia de difícil. Comecei, sozinha, a cantar. No fim da primeira estrofe, a voz dele, harmônica, encheu a cozinha e ele começou a me acompanhar até levantar e eu jogar o controle para ele, para assumir os vocais no segundo "god knows" enquanto eu pegava a vassoura para fazer nossa guitarra memorável. A voz dele estava mais alta que a do cantor; eu amava ouvir ele cantar. Fomos balançando o corpo até chegar na sala, onde havia apenas o sofá, um tapete e muitas caixas.

- It's strange but it's true... - Barry cantou, com a voz cheia de emoção. - I can't get over the way you love me like you do...

Cantamos o resto juntos, e eu comecei meu incrível solo de guitarra. Depois joguei a vassoura para lá, e ele logo se livrou do controle, me segurando pela cintura para dançarmos o pós-solo, rindo animados. A vida estava leve, calma, boa. Eu estava dançando descalça no tapete da minha sala com meu melhor amigo, com nossas mãos sujas das canetas e a boca com gosto de vinho. Balançamos os ombros quando ele voltou a cantar, e nós combinamos o passinho de ir de um lado para o outro com o pé, batendo palmas. Nós só queríamos ser livres. Nós só queríamos ser liberados.

Kairós - salivia.Onde histórias criam vida. Descubra agora