"Ser livre assim, aí de mim..."

114 16 5
                                    

Nas férias de meio de ano de 2015, eu viajei. Não que isso fosse novidade, eu viajava frequentemente. Mas naquele ano foi diferente: fui para o interior de Minas, numa cidadezinha chamada Santa Rosa do Norte (não, não existia a do Sul). Parecia uma cidade perdida no tempo, com pouquíssima área urbana. O centro da cidade quase não tinha casas, havia um banco, um cartório, a prefeitura, um hospital e uma faculdade com poucos cursos. Na época, tinha apenas Veterinária, Agronomia, Zoologia... Cursos voltados para áreas rurais. Os poucos prédios eram dos donos de comércio do centro e de estudantes. O prefeito da cidade, apelidado carinhosamente de Xerife Trindade, era o dono da maior fazenda. Tudo isso foi o que Olivia me explicou enquanto saíamos do condomínio.

— Santa Rosa do Norte? — Perguntei. — Por que o nome? — Ela sorriu, eu fiz a pergunta que ela queria ouvir.

— Theodoro Fernando Rosa do Norte, um peão que fez a primeira fazenda do lugar, que hoje é um museu em sua homenagem. — Olivia molhou os lábios. — Prepare-se para conhecer um boiadeiro incrível.

— Meu herói é o Beto Carrero. — Falei, fazendo referência à vez que fomos ao parque e vimos todas as peças que conseguimos, até o passeio de trem, onde somos "pegos" por bandidos e ele e seu cavalo vêm nos salvar.

— Beto Carrero é só mais um perto de Rosa do Norte. — Ela ajeitou o corpo, e os pais dela riram no banco da frente. — Theodoro Fernando era de Mato Grosso, num lugar perto de um rio que eu não lembro o nome agora...

— Olivia Rodrigo esqueceu um nome? — Brinquei. Estávamos fazendo muitas brincadeiras. O clima de implicância era nítido, uma novidade recorrente: de uma hora para a outra, virou comum a gente ficar zoando uma à outra. Não que antes não acontecesse, mas agora era mais... cotidiano. Fazia parte de nós. — Vou até rezar um terço, vai chover a viagem inteira.

— Ha ha. — Ela disse, com uma expressão séria.

— São Manuel, Olivia, é o nome do rio. — Disse o pai dela, rindo.

— Isso! São Manuel! — Ela se animou novamente. — Rosa do Norte estava com seu gado em sua fazenda, perto do Rio São Manuel, que fica no norte de Mato Grosso. Então, a área teve a maior chuva do milênio e ele precisava salvar seus animais. Em 20 dias de viagem, ele levou três mil animais de quase o fim de Mato Grosso para o norte de Minas Gerais sem nenhuma perda. Lá ele construiu sua fazenda, era rico mesmo.

— Isso em que ano? — Perguntei.

— 1932. — Ela respondeu.

— Meu Deus, como cabe tanta coisa nessa cabeça? — Olhei para ela de pertinho.

— Na verdade eu sou um robô — ela falou, bem séria. Quatro segundos de silêncio, e então ela começou a mexer os braços mecanicamente. — Bippie-Bippie!

— Você é idiota! — Empurrei o ombro dela.

A viagem seguiu entre músicas cantadas, histórias e, claro, as implicâncias com ela. Olivia parecia não se importar mais em parecer idiota ou boba na minha frente. E ela era idiota. Uma tremenda idiota. Garota boba, com seus sapatos franceses, camisetas de banda e jeans folgados. Continuamos a viagem, e tocou uma música que eu não tinha escutado antes. Eu não sabia, mas o que tocava era Novos Baianos, que, em uma música, ganhou todo o meu amor. Olivia falava de tudo, contava coisas das mais aleatórias, como sempre fazia. Ela não deixava o assunto morrer, mas notou quando meus olhos se fecharam de sono por ter acordado cedo e me deixou escorar nela para dormir. Quando acordei, o carro estava parando e todos estavam tensos.

— O que houve...? — murmurei.

— O pneu estourou — Tia Eliza contou. Meu corpo despertou assustado.

Kairós - salivia.Onde histórias criam vida. Descubra agora