Episódio 13 - Amizade

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"Para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade."
-Confúcio

3 de Maio de 2020 - Manhã

   No refeitório do hospital São Lucas, enfermeiros e enfermeiras organizavam vinte cadeiras num padrão circular. Um grande cartaz bem decorado tinha escrito "DIA DA AMIZADE". Enquanto os minutos passam, o local vai se enchendo de crianças juntas com seus pais, trazendo com elas um ambiente mais alegre, mas havia uma delas que era diferente. Diversas crianças brincavam de pega-pega, mas uma garotinha estava isolada em um canto, bebendo um copo d'água. Era, aparentemente, uma pré-adolescente, tinha cabelos de cor castanho-claro, sua pele era um pouco escurecida e seu olhos eram pretos como carvão. Ela tinha um corpo meio fino e era magrela, seu tamanho era um pouco grande para a sua idade. Usava um vestido azul-ciano com bolinhas brancas que desciam até um pouco acima de seus joelhos. Uma enfermeira gentil tentou convencer de ir brincar com as outras crianças, mas ela não quis.
   Da entrada do refeitório, surge Kuroi, empurrando Jonas, que estava numa cadeira de rodas. Kuroi utilizava sua clássica vestimenta, um casaco azul com uma camisa preta por debaixo, uma calça preta e um tênis preto. Jonas utilizava a roupa padrão de paciente do hospital.
    — Tá bastante movimentado aqui. Será que tem comida? — pergunta Jonas.
    — Eu tô vendo uma mesa com uns negocin bom. Bora ver. — disse Kuroi.
   De fato, havia uma mesa com alguns lanches bem incomuns para dentro das muralhas, mas também alguns mais comuns. Tinha pão torrado, margarina, ovo, uva, banana, suco de laranja e maracujá, leite com achocolatado e café. Kuroi come algumas uvas e um pão torrado com ovo. Já Jonas come quase tudo o que pode, como se não comesse há dias. Em certo momento, uma criança dá uns puxadinhos na calça de Kuroi e o chama:
    — Ei, moço.
   Kuroi olha para baixo e a cumprimenta balançando a mão. A criança o cumprimenta de volta.
    — Moço, você é o homem que foi resgatar a tia Júlia?
    — Sim, eu e ele. — Kuroi responde gentilmente, apontando para si e para Jonas. — Como você conhece a tia Júlia?
    — É que ela e o tio Tales aplicavam primeiros socorros em quem se machucou fora da cidade, daí ela e o tio Tales. Eu queria saber onde é que ela tá.
    — Olha, infelizmente ela não vai vir hoje, porque ela tá descansando, tá bom? — responde Kuroi, com um semblante mais triste.
    — Ah, que pena, porque eu queria brincar com ela de novo. — diz a criança, que fica entristecida e sai para continuar brincando com as outras.
   Jonas termina de comer sua refeição e vira para olhar o ambiente, até perceber a garota que está isolada de todos os outros. Ele puxa Kuroi pra perto e fala:
    — Aí, qual foi a da menina quieta do lado do bebedouro?
   Kuroi olha para ela e estranha.
    — Ah, pô, às vezes ela só não gosta de outras companhias.
    — Ou... Às vezes ninguém quer acompanhar ela. — diz Jonas
    — Você quer acompanhar ela? — Kuroi perguntou.
    — Oxi, e por que eu? Vai tu.
    — Ah, tá bom. — Kuroi aceita facilmente
   Ele se aproxima do bebedouro, pega um copo descartável e começa a encher de água. Ele olha de canto de olho a garota, buscando algum tipo de brecha para interagir, mas nada. Ele começa a beber a água, que estava bastante gelada. Novamente ele passa a echer o copo d'água e o bebe.
    — É a mais velha? — ele pergunta.
   A menina dá de ombros e não se importa de fazer contato visual, olhando para o teto. Kuroi puxa uma das cadeiras do círculo para perto dela e se senta, observando as crianças brincarem.
    — Consegue ver sentido nisso? — Kuroi perguntou, mas sem a resposta dela. — Tem milhões de pessoas morrendo lá fora, mas elas brincam e sorriem, como se nada tivesse acontecendo.
    — Não é só lá fora que as pessoas sofrem. — ela disse repentinamente.
    — Hm, você falou? — perguntou Kuroi, com um sorriso no rosto, tentando manter contato visual novamente, mas sem sucesso.
   Sua voz era doce, fina e inocente, mas muito quieta. Kuroi se surpreendeu com a sua interação repentina. A garota nada mais falou, continuando a agir timidamente. Kuroi finalmente desiste de manter contato visual e observa as crianças novamente.
    — Você tem razão, pensam que podem nos dar felicidade nos prendendo numa gaiola, mas que escolha temos? — Kuroi diz
    — Eu acho que temos escolha. — ela responde. Kuroi nem tenta manter contato visual, muito menos ela.
    — Um bandido sequestra o seu pai e diz que se você sair de casa o seu pai morre, você ainda tem escolha?
    — Você ficaria dentro de casa esperando a polícia salvar o seu pai?
   Foi certeiro como um tiro, ela tinha um argumento importante. Era como se misturasse pensamentos racionais com os sentimentos.
    — Não, eu não ficaria não. — Kuroi responde, se deixando ser vencido. — Mas e os seus pais, onde eles estão?
    — Papai foi resolver umas coisas na muralha, mamãe morreu no dia A.
   Kuroi se mantém num silêncio triste, como se compreendesse a dor da menina.
    — Que pena garota. — ele fala tristemente, quando mantém contato visual e, surpreendentemente, ela também olha ele nos olhos. — É mesmo uma pena.
    — Você também perdeu alguém nesse meio tempo? — a garota pergunta.
   Kuroi olha para o chão e cruza os dedos com os braços apoiados nas coxas. Respira um pouco mais fundo, como se evitasse a resposta, na verdade ele decide que não vai responder, mas tem algo no rosto daquela garota que o lembra de alguém importante, então ele não resiste.
    — Perdi a minha família, sou o último deles. — Kuroi fala, num tom muito mais baixo.
   Ele se levanta e caminha com um pouco de pressa para fora do refeitório, tentando ao máximo cobrir o seu rosto.
    — Ou, cara. Cê vai pra onde? — Jonas pergunta enquanto engole quase cinco uvas verdes de uma vez, mas Kuroi não responde.
   Do lado de fora do hospital, poucas pessoas são vistas, vez ou outra alguém entra ou sai do hospital, mas o movimento estava muito monótono. Kuroi olha para o céu nublado, tava um friozinho gostoso naquela manhã, tão aconchegante. Passos rápidos e leves podem ser ouvidos atrás dele, mas ele já sabia quem era.
    — Me desculpa, eu não devia ter falado da minha mãe. — ela diz.
    — Relaxa, eh... Ha ha, eu nem sei o seu nome.
   Ela sorri e, com as mãos cruzadas para trás, responde:
    — O meu nome é Sally!
    — Eu, ein. Que nomezinho estranho pra se ter no interior do Ceará. — Kuroi diz, zombando dela.
    — Acontece que minha mãe era canadense, tá bom? — ela responde, retribuindo a zombaria. Kuroi ri.
    — Bem, você pode me chamar de Kuroi.
    — Cu de quem?
    — PFFFFF, que isso menina!? HAHAHAHA, é Kuroi! KU - ROI! — ele responde, enquanto ri fortemente do que Sally falou.
    — Ah, tá bom, Sally é incomum, mas cê tá me dizendo que Kuroi é o nome dum cidadão do Ceará?
    — Não é o meu nome, menina do buchão, é só meu apelido.
    — E por que tu não fala o teu nome de verdade? — Sally pergunta.
    — É segredo tá bom? Só uma pessoa sabe o meu nome e ela tá de atestado.
    — Eu te contei bastante sobre mim, por que você não me pode dizer o seu segredo?
    — Bom, eu posso te contar um segredo. — ele se senta num degrau da escada em frente a entrada do hospital, Sally faz o mesmo. — Eu tinha um pai, uma mãe e a minha irmã mais velha. Ai se eu pudesse estar na frente daquele cientista desgraçado.
    — Que cientista? — Sally pergunta inocentemente.
    — Cê não vê jornal não?
    — Naaaah, jornal é mó chato!
    — Chato é a pessoa não saber quem é Manami Akemi. — em contato visual, é possível ver que Sally estava interessada em escutar o que Kuroi estava prestes a falar. — Bom, tem um cientista japonês chamado Manami Akemi, ele era considerado um gênio e ganhou um Prêmio Nobel de medicina em 2018 por criar uma substância capaz de regenerar membros amputados os colando de volta. Acontece que no começo desse ano, foram vazados dados que confirmavam que ele tava envolvido num esquema bilionário pesquisa clandestina, essa pesquisa foi nomeada Projeto Albatroz.
    — E por que Albatroz? — Sally pergunta.
    — Calma, tô chegando lá. — Kuroi diz. — Acontece que o mano Akemi descobriu uma doença que o albatrozes tinham. Era um vírus que desligava todo o sistema nervoso central, mas fortalecia a consciência através do sistema reticular.
    — Então era como uma paralisia do sono da morte? — Sally pergunta.
    — Exatamente, Sally! Essa garota é incrível! — Kuroi elogia. — Ele estudou a atuação desse vírus e fez uma pesquisa inteira baseada nele a substância que ele criou em 2018. Não se sabe como, mas sabe-se que o vírus albatroz foi criado através desse projeto. Não se sabe como o vírus vazou para a população, só sei que tudo aconteceu em um dia só, o dia A. E aí, entendeu agora?
   Ela olha para a frente do hospital, quieta. O pequeno sereno denuncia uma chuva que virá mais tarde. Sally finalmente responde:
    — Só entendi que o cientista é do mal e que o albatroz tem paralisia de sono.
    — E quantos anos você tem mesmo, ein? — Kuroi pergunta.
    — Cê não pode perguntar a idade de uma mulher, tu tá doido?
    — E tu lá é mulher? Aposto que tu tem uns onze anos!
    — Oooooxi, e como é que tu sabia? — Sally pergunta.
    — Tá tudo aqui, oh. — ele diz apontando pra própria cabeça. — Tudo nos côco.
   Nesse exato momento, uma caminhonete para na frente do hospital. Dentro dela, havia um homem gordo, careca, barbudo e moreno, vestindo uma regata branca. Ele olha na direção de Kuroi e Sally e grita:
    — LILLY! ANDA CÁ, PAPAI!
    — Ih, Kuroi, papai chegou. — ela diz enquanto se levanta e dá uns tapinhas na frente do seu vestido azul-ciano. Kuroi também se levanta. — Somos amigos?
   Kuroi ergue a sua mão, levantando apenas o dedo mindinho.
    — Amigos.
   Ela cruza o dedo mindinho dela com o dele e parte em direção à caminhonete, que quando parte faz uma barulheira grande. Pela fumaça era possível ver que ela só engole gasolina também.

   Kuroi voltou para o refeitório e, agora, diversas crianças estavam andando em círculo no meio do círculo de cadeiras, apenas esperando que uma das enfermeiras parasse de cantar, é uma brincadeira clássica. Jonas, por motivos óbvios, está sentado distante observando tudo aquilo. Kuroi se aproxima dele.
    — Que isso, mano? Por que tu saiu daquele jeito? — Jonas pergunta.
    — Só queria tomar um ar.
    — E com a garotinha, como foi?
    — Não sei, tem algo nela que me chama atenção. — Kuroi percebe que Jonas está olhando para as crianças enquanto ouve o que ele fala. — Talvez seja familiar.
   Kuroi puxa seu pingente que ele sempre manteve escondido por debaixo das vestes e o abre. Dentro dele, a foto de uma garota de cabelos lisos de cor castanho-claro, uma pele branca, olhos pretos como carvão e óculos redondos bem chamativos. Kuroi dá um sorriso nostálgico, fecha o pingente e o guarda de novo. É, ela era familiar sim.

Albatroz: A PragaOnde histórias criam vida. Descubra agora