Um homem sensível liquefaz tanto quanto um gelo exposto ao sol, sobre um muro alto, sem árvores e sombras aos arredores, contaminado pela radiação solar. Era assim, concomitante, que pensava Beto.
Dentro de um ônibus, as janelas fechadas tentavam impedir o frio de entrar, embora o sol estivesse sorrindo no firmamento, espalhando suas alegrias solares, entre frêmitos na estrada e lampejos de luz. Beto sentia a suavidade gelada do clima. De praxe, da sua mochila desgastada retirou o livro. Deslizou o dedo na capa verde em brochura, passou pelas bordas, pela lombada, pela orelha, até folhear as primeiras páginas. Apreciava a gramatura, a textura do papel, a cor. O livro convidava-o com maestria e eloquência.
Beto esqueceu a estrada de céu lúgubre, cheia de árvores e montanhas verdes, um rio prateado e as primeiras centelhas de aparições das casas e dos prédios da cidade. Quão imerso ficou ao ler os primeiros parágrafos, passando os olhos nas linhas das frases, absorto na convicção da autora. Na verdade, tão entusiasmado enquanto leitor, ele imaginava deveras um diálogo externo e real, cujas palavras se transformaram em vozes e o exemplar era a formidável matéria corporal da autora, que a nomeava pela alcunha de Su.
Então lhe arrancou as primeiras risadas Su; por vezes altas e escandalosas, em outros momentos eram tímidas e abafadas. A autora conduzia o diálogo com uma impecável retórica, preenchendo-o de assombro e encantamento. Beto encarava-a admirado. Via-a materializada, vagando fora do livro como um fantasma feminino, cobrindo-o de gracejos intelectuais. Ao seu lado, no banco perto do corredor, sentou-se Su. As suas mãos frenéticas e convincentes tocavam-lhe a coxa numa intimidade diligente. Pávido e inconstante, ele a observava contar a parte dramática de toda a sua história. Depositou-lhe Su novas narrativas peremptórias, hipnotizando-o. Quando virava as páginas, fazia com delicadeza e maestria, tinha cuidado para não amassar as finas folhas do papel amarelo. Desejava com todas as suas forças que o doce deleite de sua leitura fosse infindável, e maldito seria quem os interrompesse. Beto acariciou os cabelos verdes de Su, eram lisos e suaves como se fossem uma segunda capa. O tipo pólen de sua pele amarelada lhe trouxe um prazer imediato, os dedos movimentavam-se em círculos, saboreando a maciez do rosto de Su.
- Ah quantas delícias me dedicas tu, ninfa literária!
Gritava Beto, tomado pelo gozo incomparável da leitura, pelos lábios carnudos de Su cheios de interlocução e metáforas, enquanto a plateia de passageiros vaiava e decretava ofensas.
Conduzido por uma valsa quimérica, tocada na orquestra de suas fantasias, pelo corredor seguia Beto imitando o ritmo do compasso ternário, segurando o livro aberto em direção de sua cabeça, como se guiasse a bailarina no palco das maravilhas. Alarmados e enlouquecidos, os passageiros apontavam para o dançarino que girava no corredor do ônibus segurando a sua musa e testemunharam o homem que se chamava Beto desaparecer na estrada.
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Outubro
PoezjaOutubro é um conjunto de textos escritos no mês que dá nome ao título. O intuito principal era compartilhar momentos da vida cotidiana e experiências que, às vezes, deixamos passar. Com um estilo mais poético em prosa, espera-se ser capaz de transmi...