Morte não dorme, nem sonha mas ultimamente eu estava fazendo essas duas coisas. A sala estava silenciosa, exceto pelo som suave do vento que passava pelas janelas quebradas. Eu sabia que aquele lugar, onde costumava me refugiar, era o ponto de encontro entre os pensamentos e as sombras. Mas nunca imaginei que ela, tão longe do mundo que a cercava, se apresentaria ali.
Ela estava parada no meio do espaço, como se tivesse sido chamada por algo invisível. Seus cabelos, recém-lavados, estavam ligeiramente molhados, caindo em ondas suaves sobre seus ombros, refletindo a luz que mal penetrava na sala. Seus olhos, aqueles olhos verdes que me hipnotizavam, estavam fixos em mim. Não, ela não estava apenas olhando para mim. Parecia que via através de mim, tocando cada pedaço de minha existência.
Foi como se o tempo tivesse parado. Eu, que já havia convivido com a morte e a escuridão por tanto tempo, sentia algo muito diferente agora. Uma sensação de... vulnerabilidade? Não, não poderia ser isso. A morte não sente, não sonha, não se perde em devaneios. Mas ali estava ela, e com ela, o primeiro vislumbre de algo que eu não conseguia entender: uma vida que eu não conhecia, uma presença que perturbava meu equilíbrio.
Eu não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que não poderia fugir disso. Algo em seus olhos me dizia que ela estava ali por uma razão, que sua presença tinha um propósito que ainda estava por se revelar.
— Que diabos você está fazendo aqui? — a pergunta saiu de mim mais aspera do que planejava
Ela apenas me olhou, e por um momento, o silêncio se arrastou entre nós, tão denso que podia quase tocá-la.
— Eu... eu também não sei. Esse lugar é seu? É incrível... — respondeu ela admirando cada pedaço do local, parecia fascinada com o ambiente.
Era confuso, mas ao mesmo tempo, eu sentia que ela sabia exatamente o que estava acontecendo. O que estava começando a acontecer entre nós. E mesmo assim, algo em mim ainda queria ignorar, afastar. Mas enquanto ela ficava ali, diante de mim, eu sabia que nada mais seria como antes. A única coisa que pude fazer foi oferecer chá e ficar conversando com ela, mas o dever me chamava e tinha que ir buscar mais algumas almas. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Tudo estava se transformando de forma que eu não conseguia controlar. A morte sempre foi algo que eu compreendi, algo que tinha total domínio. Mas agora, algo estranho estava acontecendo. Aquela garota, com seus olhos verdes e sua presença quase etérea, estava me consumindo de uma maneira que eu não podia entender.
Eu a vi dormindo, tão pacífica no sofá, com o livro ainda repousado em seu colo. Uma visão que parecia desprovida de qualquer perturbação. Ela parecia distante, alheia a tudo, mas ao mesmo tempo, havia algo ali que me chamava. Algo que não tinha explicação. Um peso na alma, uma sensação de que ela não deveria estar ali, mas ao mesmo tempo, de que ela precisava estar.
Fiquei parado, observando-a, o silêncio da sala quase me sufocando. Cada respiração dela parecia preencher o ambiente de uma calma que eu já havia perdido há muito tempo. Mas eu não podia ficar, não podia me permitir sentir o que estava sentindo. O dever me chamava, como sempre. A morte não pode se dar ao luxo de se perder em devaneios, de sucumbir ao que não deveria.
Então, quando percebi que ela ainda não havia acordado, decidi partir, como uma sombra que se desfaz ao amanhecer. Eu sabia que não deveria estar ali, que ela não era uma distração que eu podia me permitir. Mas antes de sair, dei um último olhar para ela, para a garota que, sem saber, estava quebrando a monotonia da minha existência imortal.
O que estava acontecendo comigo? Como eu poderia me importar com alguém tão mortal, alguém tão vulnerável? A morte não sente. A morte não se importa.
Mas, no fundo, eu sabia. Eu sabia que algo estava mudando. Algo que eu não poderia controlar.

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Rainha da morte
Teen FictionKatarina é uma jovem de 20 anos que carrega a dor da perda desde os 10 anos, quando seus pais faleceram em um trágico acidente de carro. A perda precoce dos pais a forçou a amadurecer rapidamente, vivendo em lares adotivos e enfrentando uma infância...