Amanheceu.
O céu nublado despejava sobre o posto, que havia sido palco de uma sangrenta batalha na noite anterior, uma garoa fina e gelada.
Ao menos quarenta das criaturas estavam espalhadas, como funéstas aves carniceiras, entre a loja de conveniências e o espaço sob a cobertura do posto. Eles devoravam os corpos dos dez homens, que poucas horas antes haviam atacado o bando dos garotos.
O rugido grave e encorpado de motores foi detectado por um dos zumbis que estava na beira da calçada. Era um homem gordo de barba branca por fazer, usava um terno cinza chumbo, sujo de sangue e fezes, em sua barriga havia um corte de onde seus intestinos se projetavam pra fora.
A criatura seguiu cambaleante até o meio da rua e grunhiu, como se tentasse encontrar a origem daquele som. Outros dois se aproximaram com seus passos desajeitados, exalando um cheiro podre de fezes humanas e carniça. Os três permaneceram parados como que concentrando esforços pra descobrirem a origem do inquietante barulho.
Um caminhão Mercedes Bens 1113 com lanças de metal presas ao seu parachoque, formando uma espécie de soco inglês gigante, subia a rua em direção ao posto. Em sua caçamba vinham dez homens fortemente armados, esses homens usavam camisetas cobrindo as cabeças, como faziam os presos rebelados.
O motor rugiu como uma fera ensandecida, que foi de encontro as criaturas paradas no meio da rua. O violento impacto mandou pra longe os pedaços de cadáveres ambulantes. Sangue preto, fluidos corpóreos, membros decepados e intestinos fixaram-se ao caminhão que não freou, apenas diminuiu a velocidade e parou em seguida, a cerca de duzentos metros do posto. Outros dois caminhões que seguiam os mesmos moldes do primeiro subiram a rua e pararam em frente ao posto, seguidos de perto por uma Blazer da policia militar do estado de São Paulo.
Toda aquela movimentação chamou a atenção de alguns dos mortos vivos que se ergueram de onde estavam e caminharam rumo a calçada, todos os que estavam sob a proteção do posto seguiram na direção dos veículos.
O primeiro caminhão voltou de ré e parou diante do posto.
Da porta do motorista uma nova figura surgiu trazendo consigo uma marreta com um longo cabo de metal. A primeira vista parecia um homem muito grande, facilmente passando dos dois metros de altura.
O gigante com a marreta caminhou a passos largos em direção a horda que vinha de encontro a ele.
Tal qual os companheiros que o acompanhavam na caçamba, seu rosto também estava coberto por uma camiseta a moda dos "cadeieros" rebelados.
As criaturas já haviam formado uma meia lua ao redor do colosso, com a mascara ninja de camiseta, quando seus poderosos braços se ergueram e com força esmagadora projetaram a enorme marreta contra a primeira criatura, que tombou com a violência do golpe. O crânio pútrido explodiu espalhando massa encefálica pra todo lado. O impacto foi tão violento que o gigante teve de empregar força na tarefa de arrancar a marreta da perfuração que havia sido aberta no concreto da calçada.
Em passos lentos, outros seis zumbis, se aproximaram apenas pra serem esmagados a golpes de marreta. O corpo de formas rechonchudas movia-se rápido e com extrema violência os ataques disferidos derrubavam e explodiam os crânios em movimentos únicos.
Um pequeno amontoado de zumbis abatidos se formou ao redor daquele gigante, que parou por um instante, ofegando apoiando o braço sobre a ponta do cabo da marreta que estava posicionada sobre a calçada. Sinalizou aos homens que estavam nas caçambas dos caminhões pra que eles descessem.
Cerca de dez homens desceram dos caminhões, permanecendo a maioria brandindo suas armas, ainda de pé sobre as caçambas dos veículos.
Os homens que desceram caminharam com armas em punho.
O som dos tiros encheu o ambiente.
Em alguns minutos o terreno sob o teto do posto estava livre de zumbis.
O gigante com a camiseta amarrada na cabeça seguiu atrás dos homens que abriam caminho atirando. A marreta descansava sobre o musculoso ombro direito, enquanto a enorme figura caminhava chegando cada vez mais perto da porta da loja de conveniências, de onde outros tiros ainda foram disparados.
-E aí? - perguntou o gigante, com voz forte e inconfundivelmente feminina, que colocaria em duvida qualquer um que ouvisse o som de sua fala, qualquer um que não tivesse reparado os seios pequenos sob a camisa folgada e os quadris largos dentro da calça de moletom.
-Todo mundo morto. - respondeu um dos homens armados.
Ela se aproximou e pelas roupas rasgadas reconheceu o irmão caído, chegou mais perto de seu corpo e percebeu que havia um buraco de bala num dos olhos.
-Pelo jeito não foram os zumbis que mataram eles. - disse a mulher com voz calma.
-Tem sinais de tiroteio aqui dentro. - falou o mesmo homem.
-Nós acompanhamos as ultimas transmissões de rádio deles, disseram que tinha uma garota e uns moleques aqui. - disse um homem branco se aproximando, tinha por volta de quarenta anos e usava a farda da policia militar do estado de São Paulo.
-Disseram também que estavam oferecendo resistência e "apagaram o Martins". concluiu o policial.
-Filhos da puta. - gritou a mulher. -Meu irmão era a unica família que eu tinha! - esbravejou ela dando uma marretada na parede, abrindo um buraco.
Seu ser havia sido invadido por um enorme sentimento de vingança, estava cega para as causas daquilo tudo, não interessava se aqueles homens queriam a garota a força ou não, o mundo lhes pertencia agora, e tudo o que quisessem eles teriam.
Os mortos se levantaram, acabaram com toda a estrutura da sociedade, aquelas pessoas que outrora foram os páreas é que faziam as regras agora.
Suas lágrimas não rolaram, mas seu ser transbordava de ódio. Ela se apoiou na porta e olhou pra fora do posto, quando uma voz vinda de dentro da loja chamou sua atenção.
-Aí Bia, olha só o que eu achei! - gritou um dos atiradores vindo em sua direção, trazendo nas mãos uma mochila cor de rosa aberta, de onde tirou uma foto em que estava uma garota de olhos azuis e cabelos chanel, junto de quatro garotos.
Ele entregou a foto a mulher, que retirou a camiseta da cabeça, revelando seus cabelos raspados e sua pele clara, ela tomou a foto nas mãos, olhou aquele pedaço de papel fotográfico como se estivesse diante de um mapa do tesouro. No fim da busca não haveria dinheiro ou pedras preciosas, na verdade naquela altura dos acontecimento aquilo já não valia mais nada.
Os sobreviventes estavam em busca de motivos pra seguirem em frente, motivações que já não tinham ligação com o valor dos bens materiais.
Aqueles que até aqui haviam sobrevivido, em sua maioria, era forte o bastante pra lidar com aquela maldição que fazia com que os mortos voltassem a andar, famintos e cheios de fúria contra os vivos. Mas nem todos estavam a fim de uma existência pacífica, naquela terra que agora pertencia aos zumbis.
-A gente tem uma vadia pra caçar! - falou a mulher que empunhava a marreta, com um sorriso doentio nos lábios.
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Pé de cabra A era dos mortos
HorrorPé de cabra é a saga zumbizesca que explora novas possibilidades sobre as origens do apocalipse zumbi, com personagens fortes e reviravoltas em solo tupiniquim. Venha se encantar com as possibilidades que um motivo inicial diferente é capaz de...