Capítulo 2 - Enterrando os mortos

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Enterrando os mortos

A chegada do pequeno grupo ao Pântano do Desespero (pois somente seus habitantes o chamavam de Pântano da Esperança) havia sido recebida com precaução pelos misturados, que ficaram um pouco mais à vontade quando se depararam com Aura e Lokele, contudo, convencê-los a abrigar o Salvador havia sido mais fácil do que tinham imaginado. Era a primeira vez na história de Wicnion que os misturados eram envolvidos em um evento pelas demais aldeias, e isso os deixava orgulhosos, fazendo com que se sentissem úteis e valorizados.

Os misturados tinham a estima extremamente baixa e temiam todas as demais espécies. Passaram dias acreditando que seriam capturados e levados ao castelo do Rei Rufus, antes de acreditarem que realmente estavam sendo convocados para uma rebelião, à qual só aceitaram porque sua participação estava limitada apenas a proteger Tedros.

Eik, Barbarus, Abdias e Ubax passavam o dia treinando jovens misturados no manejo das armas, que eles mesmos ensinavam e ajudavam a confeccionar e, logo, o convívio com aquela tribo derrubou o incômodo inicial que sentiram diante de tantas formas diferentes, que desafiavam o convencional. "Enxergar um coração bondoso no outro torna os olhos cegos à aparência", Melvil Shiyali escrevera em suas anotações com a caneta que Immutef lhe presenteara. Sentia a falta do amigo, mas partiriam de volta para casa na noite seguinte, deixando o Salvador, Aura e Lokele sob os cuidados dos misturados.

A tribo festejava a primeira noite de Blu sob a proteção de Luvelann e Quartarius, mas os humanos e o baladino sentiam seus corações apertados, sem perceberem os amigos invisíveis que os inspiravam para que dobrassem a atenção no retorno à aldeia. Abdias tentava em vão saber o que estava acontecendo, mas só havia recebido a orientação de que deveria se lembrar de quem era e do motivo de ter nascido em Wicnion, mantendo sua fé no Portal de Anaya e na Fonte Original.

Eik Darak pegou um pouco do caldo quente, preparado com gordura animal e temperado com ervas, e se afastou do grupo, procurando um lugar onde pudesse comer sossegado e contemplar Blu longe do alvoroço. O pântano não era exatamente um local agradável, mas ele encontrou refúgio num tronco morto e seco, atolado na lama e que passara o dia sob o calor de Flav. Ainda era possível ouvir a música e o falatório, mas o som estava distante o suficiente, permitindo que se concentrasse em sua aldeia. Perguntava-se se estariam celebrando como sempre faziam, se Marianna havia aceitado a explicação que Vetus lhe dera e se ela o perdoara pela traição. Ele apoiou o pote com o caldo em uma ramificação do tronco e se deitou. O azul de Blu estava tão magnífico naquela noite e seu reflexo violeta tão sedutor, que Eik esqueceu, por uns instantes, toda a preocupação e pensou apenas em Marianna. Imaginou-a ali com ele, deitada ao seu lado, contemplando o céu e suas luzes brilhantes. Sem resistir, entregou-se aos devaneios do desejo e logo uma de suas mãos tateava sob a roupa de baixo, libertando-o para aliviar a tensão, tendo em mente o corpo nu de Marianna encaixado ao seu. Tirou a mão e buscou o pote com o caldo gordurento, lambuzando-a com ele e recolocando-a de volta entre as pernas. Já liberto da pressão da roupa, fechou os olhos para que a visão de Marianna se tornasse mais vívida, sentindo a temperatura morna do caldo e enxergando os olhos da esposa a encará-lo enquanto o saboreava com sua fome insaciável.

O pântano, agora, estava no mais absoluto silêncio, pois Eik só era capaz de ouvir a própria respiração, cada vez mais acelerada. Quando seu corpo se contraiu pela última vez, ele viu Marianna sorrir e gemer junto. Eik contorceu-se e tremeu um pouco mais, antes de relaxar o corpo sobre o tronco, deixando a mão pender de lado. Aguardou parar de bufar e vagarosamente se sentou para tomar seu caldo. Ainda entorpecido, olhou em volta, mas não encontrou onde limpar a mão, então, esfregou-a no tronco e depois na própria roupa, ajeitando-se em seguida. Já se preparava para comer quando ouviu um barulho atrás de si. Virou-se tão depressa que quase caiu do tronco, mas a mesma sorte não teve o pote em suas mãos, que pulou direto para a água lamacenta. Assustado e sem entender como ele havia chegado ali, Eik viu Tedros sentado na extremidade do tronco, segurando um pequeno galho que usava para brincar com as folhas que boiavam na lama.

O Portal de Anaya - Livro 3 - A evoluçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora