Capítulo 1 - O primeiro ataque

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O primeiro ataque

Depois dos longos dias avermelhados de Rugx, era bom ter a claridade de Flav a penetrar a vegetação e iluminar a aldeia, e qualquer desavisado que chegasse poderia crer que ali se vivia uma rotina harmoniosa, onde o cair da noite anunciava o término da labuta diária, e o retorno à tenda era recompensado pelo convívio com os entes queridos. Contudo, essa seria uma conclusão precipitada e superficial, induzida pelo silêncio imposto a todos os aldeões depois de saberem que o Salvador havia sido levado por seus líderes para algum lugar desconhecido.

Todos tomaram conhecimento de que Eik e Barbarus haviam partido sorrateiramente com o menino Tedros, mas esse não era um assunto sobre o qual fosse permitido especular. Os pais de Abdias bem que tentaram obter alguma informação a mais quando receberam o recado da nora grávida, que lhes chegou à tenda com os olhos lacrimosos e o bilhete em mãos. Temerosos, como sempre, pelo destino do filho extremamente amado, o casal acolheu a jovem que logo depois deu à luz a um forte e saudável bebê e buscou junto ao Conselho uma resposta para a partida repentina do rapaz. Todavia, eles encontraram não apenas o silêncio, mas a expressa recomendação para não fazerem nenhum tipo de questionamento a esse respeito, pois Abdias estava a serviço dos interesses da aldeia e que tanto o destino quanto o motivo de sua ausência eram de conhecimento apenas de seus líderes e conselheiros.

Essa partida abrupta também impactou profundamente Dathí Daoud. O rapaz passara toda sua vida sentindo-se medíocre, mas havia encontrado a alegria projetada na anomalia das irmãs misturadas Aura e Lokele. Quando soube da partida das meninas e que, além delas, seu irmão Ubax também se juntara ao reduzido grupo, afundou novamente em uma existência vazia e ainda mais amarga. Desde então, o veneno destilado por Dathí tornara-se tão letal quanto o de um escorfídio, e nem mesmo a mãe era capaz de se aproximar sem que fosse atingida por um comentário capaz de abrir feridas em seu coração, como o fato de ouvir do filho que o pai frequentava a Tenda Vermelha porque não se interessava mais por ela, que se transformara numa mulher gorda e sem atrativos. Depois disso, ela evitava qualquer conversa com o rapaz e, menos ainda, convencê-lo a ter paciência com os irmãos, o que se tornara desnecessário, uma vez que ele trocara o sofrimento das humilhações impostas por eles por agressões verbais que os colocavam devidamente em seus lugares pequenos, não por suas atividades, mas por suas mentalidades.

Dathí só lamentava uma coisa, ter precisado chegar ao fim do abismo de sua dor para descobrir que os irmãos eram uns estúpidos, incapazes de revidar de forma inteligente uma ofensa. Na maioria das vezes, sequer conseguiam compreender que tinham sido insultados e quando acontecia dele ser bem explícito, sem dar margem à dúvida de que os tinha xingado ou ofendido, eles demoravam tanto para elaborar uma resposta à altura que quando estavam prontos a replicar, Dathí Daoud já havia se retirado, nunca sem deixar mais um pouco de veneno pelo caminho.

- Se o que você tem entre as pernas for tão inútil quanto o que você tem na cabeça, eu me pergunto se aqueles filhos são realmente seus.

Mas o auge de sua performance se deu quando reuniu todas as forças de seu espírito para enfrentar o pai. Acostumado à sua indiferença, Dathí evitava qualquer contato com seu progenitor, mantendo-se fora do caminho ao menor sinal de sua presença. No entanto, naquela noite ele não faria isso. Estava tomando seu caldo quente na entrada da tenda, aproveitando a brisa fresca e construindo mentalmente um arsenal de frases de impacto, afiando-as, polindo-as, como adagas a serem usadas em um campo de batalha, prontas para atingir o primeiro inimigo que cruzasse com ele.

O pai se aproximou sem que Dathí o percebesse e se prostrou diante dele esperando que saísse da sua frente como sempre fazia, mas ele não o fez. Lentamente, Dathí ergueu os olhos para em seguida observar o espaço a sua volta. Então, voltou a tomar o seu caldo, caprichando na tragada e sorvendo o líquido ruidosamente.

O Portal de Anaya - Livro 3 - A evoluçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora