• Capítulo 1

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"...Criados pelo céu e levados a terra para implantar, fazer, ensinar o bem e além de tudo aprender a como proteger o bem." Diz o livro Intocável. De início não somos anjos, pois só os escolhidos podem ser chamados assim e também nem podemos ser chamados de humanos, pois vivemos um determinado tempo em que os mortais não alcançam. Temos as características físicas e sentimentos assim como os mortais, porém temos dons divinos. Eu acho que não tenha uma definição fixa para nós, mas criamos um nome. Gostamos de ser denominados como Qherubians. Somos aprendizes. Depois que ela nasceu, fomos criados e trazidos para a terra para aprender como conviver entre os humanos, para assim poder saber como cuidar dela. Esse sempre foi o nosso dever e objetivo, cuidar de uma pessoa que nunca vimos.
Sim, nunca a vimos, só os escolhidos e os superiores a nós sabem como é o seu rosto. Aprendemos que ela é o nosso bem mais precioso por ser o único humano na terra que já viveu mil encarnações. Para muitos isso era a coisa mais importante, o resto não importava. Para muitos, não para mim.
Eu sempre tive curiosidade em saber como ela é, o seu jeito, o seu cabelo, o seus olhos. Porém, nunca quis ser um escolhido. Não queria isso, pois nunca soube cuidar de mim, como poderia proteger alguém tão precioso? Agora eu já não tenho mais escolha. Vou ter que lutar com tudo que eu tenho para mantê-la sã e salva.
Todos falharam até hoje, por isso estou aqui, depois de vinte anos que o último escolhido falhou. Pensar que ela viveu tão pouco da última vez, me consome. Eu não quero e nem vou falhar.
Agora que já estou aqui, caminhando para o ponto de luz mais forte, penso em como difícil isso vai ser. Lembro-me da frase que a Amélia, a anciã mais velha, disse para mim minutos antes de falecer: "Toda dificuldade tem uma brecha escondida, procure e achará tudo o que precisa para vencer." Acho que ela já sabia que eu ia precisar desse conselho. Vou procurar e vou fazer disso a lei da minha vida. Fui criado para isso e só agora fiquei realmente determinado, talvez porque eu pensasse que a minha existência era inválida, até agora.
A Amélia é uma das poucas que já viu e leu o livro Intocável, ela um dia me disse que é chamado de "intocável", pois apenas os verdadeiros mestres podem lê-lo. "Esse livro é totalmente diferente da bíblia. Ele foi feito unicamente para nós, Qherubians. Nele há tudo que devemos saber e você irá aprender tudo isso comigo pequeno sonhador." Aquela anciã me ensinou tudo o que sei sobre a vida, o céu, a Terra e o nosso objetivo. Sua eternidade durou o tempo que achou necessário. Um benefício de ser Qherubian é poder escolher a hora que morrer depois que se passa dos mil anos. Acho que a vida é muito mais dolorosa que a morte, viver por tanto tempo deve ser cansativo. Por esse motivo os superiores deram essa escolha para nós. Amélia viveu bastante e sua vida serviu de exemplo para muitos que a conheceram, principalmente para mim.
Só percebi que estava distante com os meus pensamentos quando vi que estava me aproximando de uma luz muito forte, sinal que eu já estava chegando onde a voz me mandara ir. Adiantei os passos, agora já determinado, não precisava mais andar lentamente.
Quando cheguei ao local onde a luz estava extremamente forte, parei bruscamente. Eu ia a conhecer, finalmente, eu estava a poucos passos da mudança total da mesmice que era a minha vida. Sorri. Eu sou o escolhido. Eu sou o seu anjo. E o melhor, eu não ia deixar que nada de ruim acontecesse, eu seria o primeiro a não falhar.
E foi com esse pensamento que fechei os olhos e caminhei para a luz intensa que cobriu todo o meu ser.
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— Ela te atrairá, você apenas tem que seguir seus sentimentos. – ouvi a voz dizer. –Encontre-a e coloque em prática tudo que aprendeu. Contamos com você Mikael. Me chame se estiver em meio a dúvidas, estarei com as respostas.
Agradeci em pensamento. Eu realmente precisaria de ajuda.
Quando abri os olhos eu já não estava imerso na luz. Comecei a ouvir vozes bem perto. E quando minha visão ficou clara percebi que estava em frente a um hospital. "Mas é claro!" pensei. Ela estava prestes a nascer.
Corri adentrando o local cujo o nome não consegui ler. Estava tudo muito tranquilo com poucas pessoas, era estranho, afinal era um hospital. Eu esperava encontrar pessoas em macas e filas gigantes, assim como os que eu e Amélia visitamos. Haviam apenas médicos e enfermeiras apressados, incapazes de me ver.
Eu não tinha noção da hora, mas ainda se via a luz do sol das janelas. Minha pressa aumentou quando senti um certo puxão no peito. Será esse o sinal? Entrei pelos corredores tentando ler as placas que informavam os departamentos do hospital. Logo encontrei a placa com "maternidade" como nome.
Comecei a ouvir os gritos. Bebês chorando e mães sentindo as dores do parto.
Eu soube que era ela quando uma força estranha me fez parar em frente a uma porta branca e grande. Ouvi um grito de dor alto, era a mãe dando, literalmente, a luz.
Passei por entre a porta sem a menor dificuldade. A Amélia me explicou que quando ela ainda estivesse nascendo eu seria como um fantasma, ninguém poderia me ver e passar pelas paredes e portas seria fácil. Soou engraçado na hora, mas agora eu percebi a real importância. Eu tinha que estar lá naquele momento, nada podia me impedir.
Vi os médicos e ajudantes em volta da mulher deitada, de pernas abertas. Ela fazia força, respirava e voltava a fazer força. Ela sentia dor, muita dor. Os seus gritos demonstravam isso. Seu suor brilhava, escorrendo e fazendo o cabelo escuro grudar na testa. Panos que antes pareciam ser azuis foram manchados com o seu sangue.
Uma das ajudantes estava ao seu lado dando apoio "Empurre, só mais um pouco, você consegue." Dizia a ajudante de minuto em minuto. Saí de perto da porta, onde estava o tempo todo, ainda processando a cena. Dei a volta na sala e fiquei atrás da cabeça da moça que sofria com o parto.
— Esta mulher não vai resistir, não tem forças para isso. Precisamos retirar o bebê o quanto antes, se não, os dois morrem. – ouvi um dos médicos dizer. O outro assentiu e começou a apertar um pouco acima a barriga para impulsionar a saída do bebê.
Aquilo não podia estar acontecendo, ela nem havia nascido e já estava à beira da morte.
Levemente e quase nem tocando, coloquei minhas mãos sobre a cabeça da mulher em minha frente. No mesmo instante ela arregalou os olhos que antes estavam semi-abertos. Eu apenas mentalizei que estava transferindo toda a força que ela precisava. Isso bastou, pois deu um impulso forte e um grito alto.
— Estou vendo a cabeça. – falou, entusiasmado, o homem de máscara e luva ensanguentada. — Um pouco mais de força e... – De uma vez ele retirou o bebê.
Foi como música para os meus ouvidos, nunca um choro fora antes tão bonito. O médico pegou ela nos braços enquanto o outro cortava o seu cordão umbilical.
— É uma menina – disse a ajudante logo depois de pegar o bebê nos braços e levar até a mãe. — Qual será o seu nome? – Indagou.
A mulher vislumbrada com o que estava na sua frente, acariciou a cabeça de sua filha. Respirou e expirou intensamente, em forma de alívio.
— Meredith, o nome dela é Meredith. – conseguiu dizer com a voz fraca. E com os olhos cheios de lágrimas, sorriu. Piscou lentamente e entre os seus cílios uma lágrima ousou cair. Pude ouvir seu coração parar de bater, lentamente. A ajudante quando percebeu que a moça estava falecendo, deu o bebê, com cuidado, para um enfermeiro que já estava esperando com uma manta limpa e branca nas mãos. Ele foi rápido e levou o bebê dali.
Eu tentei salvá-la, colocando mais uma vez minha mão sobre a sua cabeça, mas nada adiantou, já era a sua hora, sua missão foi comprida. Ela deu a luz a um dos seres mais importantes de todo o mundo.
Corri sem olhar para trás. Segui o som dos passos do enfermeiro que levou Meredith nos braços. Ele diminuiu o ritmo e parou em frente a outra porta e quando a abriu pude ver vários outros bebês. Ele a colocou em um berço vazio, escreveu seu nome em uma prancheta e saiu.
Todos os bebês ali presentes estavam dormindo. Apenas ela estava acordada e chorando, provavelmente com fome. Me aproximei e no mesmo instante, parou de chorar. Consegui a olhar com mais clareza. Seus olhos, ainda marejados, eram como os da mãe, castanhos claros. Sua boca era rosada e seu rosto era delicado.
Eu estava diante do propósito pelo qual eu vivo e estava encarregado de cuidar para que mais uma de suas vidas não seja levada tão cedo.
Continuei a observar, ousei acariciar sua cabeça. — Então é você – Falei suavemente, sorrindo. — É uma honra te conhecer, meu nome é Mikael.

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