• Capítulo 2

270 26 7
                                    

      Hoje a Meredith completa dezesseis anos. Lembro-me muito bem daquele final de tarde do ano de 1999 e do jeito como a conheci... Parece que foi ontem.
         Acompanhei todos os seus passos em todos esses anos e cuidei para que nada desse errado, para que nunca se machucasse. Decidi permanecer invisível para poder observar tudo de mais perto, era melhor assim.
         Meredith nunca quebrou um braço ou alguma perna, nada a ameaçava enquanto eu estava próximo, ou seja, sempre. Só houve uma coisa que aconteceu e eu não pude evitar. Ela teve o seu coração partido.
         Aos catorze anos se apaixonou por um garoto da escola, bem mais velho. Decepcionou-se quando o mesmo espalhou pela escola boatos mentirosos e sujos sobre ela, ele ainda ousou colocar o nome de sua mãe no meio. Meredith ficou arrasada e nunca houvera um momento que defendeu tanto a mãe falecida, como no dia em que ela deu um soco quebrando o nariz do garoto que espalhou tanta sujeira.
        Senti uma ira crescer dentro de mim quando ouvia alguns alunos e alunas da escola falando algo ofensivo sobre ela como: "Vadia órfã". Eu podia ter feito algo, porém os superiores a mim diziam para eu não interferir. Meu "trabalho" era apenas a proteger das coisas que ameaçavam sua vida.
        Eu vi uma menina sorridente, carinhosa e delicada, mudar totalmente. Passou a usar só preto. Ficou fria, perdeu metade dos amigos, por se afastar demais, assim ficando solitária. E depois de 2 anos daquela que era antes, só sobrou sua paixão pela música.
         Meredith toca violino desde os doze anos de idade, porém apenas o seu professor e eu sabemos do seu talento. Ela nunca teve coragem de tocar para ninguém, nem mesmo para a sua avó.
        Eu gosto das Quarta-feiras, pois esse é o dia das suas aulas. Marcus, o seu professor, fica encantado e ao mesmo tempo chocado com tanta técnica e firmeza que ela consegue tocar. A sala onde ela pratica, em uma área na casa de Marcus, é tão vasta que torna o acústico melhor, deixa o som do violino ainda mais bonito. Parece que tudo é feito justamente ao favor dela.
        Hoje é uma Quarta-feira e Marcus a recebeu com um enorme abraço.
— Minha violinista favorita, meus parabéns, lhe desejo muito sucesso. – disse ele ainda no abraço.
— Muito obrigada Marcus, mas não irei fazer sucesso. Já disse que o violino é só um hobby. disse ela saindo do abraço e repousando a case do instrumento em cima de um piano que se localizava bem no centro da sala. Enquanto isso Marcus revirava os olhos atrás dela sentando-se em uma cadeira.
— Os amantes da música e todo o mundo estão perdendo você, ainda bem que pelo menos eu posso ouvi-la. – disse com deboche no tom de voz.
Meredith ri. Sua risada é doce e eu a adorava. Vê-la sorrir era praticamente uma raridade.
— Você sempre irá me ouvir, se não fosse por você, eu não encontraria a minha verdadeira paixão. –. diz ela com sinceridade. Ela tinha um carinho enorme por Marcus desde que ele começou a ensiná-la.
       Ele era um homem de meia-idade formado em música e apreciava tanto como Meredith tocava, que passou a não cobrar mais pelas aulas, apesar dela insistir muito.
— Fico grato por isso. – disse sorrindo — Agora vamos ao trabalho, terminar o mais rápido possível para você poder ir curtir o seu dia.
     Meredith ficou pensativa, mas assentiu. Provavelmente ela deve ter pensado que não iria fazer nada ao longo do dia. Iria apenas dormir o dia todo ou escutar música, mas não quis falar para Marcus porque sabia que ele começaria um sermão sobre aproveitar os momentos da vida.
— Hoje irei tocar Pachelbel, Canon in D. – falou ela depois de ter se posicionado com o violino.
      Marcus respondeu com palmas de alegria.
      Então ela começou, era como se estivesse flutuando, a cada nota da música. Por um momento parei de pensar em toda aquela situação que nos ligava e percebi como ela é graciosa. Seus cabelos negros estavam em um rabo de cavalo sobre os ombros da pele pálida, sua bochecha e boca rosadas. Podia-se avistar sardas no seu nariz e seus olhos brilhavam em uma cor castanha clara.
      O local foi tomado pela música. Ela parecia estar em outro mundo com os olhos fechados. Quando os abriu, olhou diretamente para a janela, na direção em que eu estava. Meu coração bateu mais forte quando os seus olhos pareciam estar olhando fixamente os meus, esqueci que Marcus estava ali, esqueci todos os outros e esqueci que ela não me via. Naquele momento só existia eu e ela.
      Desviou o olhar, acabando com o meu devaneio louco. Movimentou o arco com um movimento contínuo e finalizou a música.
  — Bravo, bravo. – disse Marcos batendo palmas. — Você não precisa mais das minhas aulas querida, não tenho nenhuma observação a fazer. Você é perfeita! – finalizou ele.
— Não exagere Marcus. Não me diga que não preciso mais das suas aulas... Quero continuar a vir aqui. – disse ela com convicção.
— Eu não disse que era para você parar de vir aqui, pelo o contrário! Só digo que você não é mais uma aprendiz e sim a minha ídola. – disse ele se levantando. Realmente Marcus tinha o dom do exagero e Meredith apenas ria disso.
     Ela coloca o violino e o arco de volta para a case, anda até a porta onde Marcus a esperava. Se despediu com um abraço e saiu do local. Ela ia andando até sua casa.
      Meredith faz o mesmo trajeto todas as quartas à tarde. A casa de Marcus fica próxima a escola, local que ela mais odeia ficar. Por isso quando passa em frente, sempre apressa os passos para que ninguém a veja fora dos horários das aulas. E era isso que ela estava fazendo agora, caminhando muito apressada.
      Serenidade é uma cidade calma, como o próprio nome já diz. Com o total de aproximadamente 350 mil habitantes se encontra no sul do estado de Medi, Utopia.
       A casa de Meredith se localiza mais ou menos onde tudo acontece na cidade. Sua rua é utilizada para as festas, feriados e comemorações.
         Meredith anda mais alguns metros e finalmente chega a sua casa. Sua avó a recebe com muitos beijos.
   — Dezesseis anos minha neta, nem consigo acreditar. Lembro-me quando te peguei no colo pela primeira vez. Que você seja feliz, parabéns! – diz ela entregando-lhe uma caixinha com um laço azul.
— Vó, eu disse que não precisava de nada. –. Meredith diz e logo depois de ver a felicidade da avó, pega a caixinha.
— Abre, eu sei que irá gostar. – diz a senhora sorridente ao lado de Meredith.
Então ela abre e encontra dentro da caixa um colar com um pingente bem peculiar, eram asas de anjo. Fiquei surpreso. Surgiram boatos sobre Donna há muito tempo atrás antes de Meredith nascer. Afirmavam que ela era um tipo de bruxa e podia pressentir as coisas. Bom, parece que os boatos eram de verdade.
       — Eu amei vó! – disse Meredith ainda olhando para o colar. — Obrigada.
— Eu fiz um bolo para comemorarmos! – disse Donna, animada.
Elas caminharam até a cozinha e Donna insistiu em cantar "Parabéns pra você" Meredith não suportava a tal música, mas guardou esse sentimento para si, afinal não queria magoar a avó.
Depois de comer e despedir de Donna com um beijo na testa. Meredith resolveu ir para o quarto. Colocou o seu violino no mesmo lugar de sempre, embaixo da cama. Abriu o guarda roupas. Tirou todas as roupas da última gaveta e conseguiu achar o que procurava. Uma caixinha de madeira com uma lua desenhada a mão logo na frente. Abriu e encontrou fotos desgastadas e velhas de uma moça com sorriso puro e de cabelos grandes bastante emaranhados. Era a sua mãe, Melissa.
Me lembro do olhar dela quando estava dando à luz e de como seus olhos fecharam lentamente quando suas forças acabaram.
Meredith estava chorando. Um choro silencioso, porém eu conseguia ver as lagrimas escorrendo no seu rosto. Dezesseis anos da morte da mulher que nem chegou a conhecer e mesmo assim ela estava chorando.
Deitou na cama com a foto ainda na mão. Depois de alguns minutos, adormeceu.
Sentei em um poltrona no canto do quarto, onde sempre costumo ficar quando ela está dormindo.
Meus pensamentos vieram a tona. Meredith é tão sozinha, tem apenas sua avó, Marcus e alguns colegas da escola. Eu sei que deveria só proteger ela, porém eu vejo que ela está infeliz nessa vida. Estou cumprindo o meu objetivo de proteção, porém do que vale viver uma vida inteira sem ter felicidade? Pensando nisso, resolvi fazer uma coisa que poderia mudar o rumo de tudo... Eu iria aparecer para ela.

QherubianOnde histórias criam vida. Descubra agora