Exprovado

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Seu Augusto era professor, e achava que a meritocracia era ademocracia aplicada a nível de individuo. Para ele, se alguém nãotinha alguma coisa era porque não merecia, não tinha batalhado ouestudado o suficiente, não era digno, logo era um vagabundo. Quemescutava Bob Marley era maconheiro, rave era para jovens drogados equem falava sobre Marx não merecia respeito. Gostava de ir à missanos domingos de manhã, para que todos vissem que ele jamais acordavadepois das sete. Morava numa casa grande, num condomínio, e dirigiaum sedã, sempre, notavelmente, enceirado a mão. Também tinha umacasa na montanha, outra na praia e um sítio. Era o exemplo claro doque seu pai o fez crer que era o sucesso. Do ponto de vista de SeuAugusto qualidade de vida era um conceito vago que servia parajustificar o fracasso.

Não usava roupa amassada ou tênis sujo. Estava sempre com umrelógio de pulso. Aparava o cabelo, e a barba, semanalmente. Sótomava cerveja artesanal e fumava charuto dominicano, porque nãoqueria colaborar com o regime cubano. Não via com bons olhosaglomerações ou festas populares. Não tolerava excessos.Acreditava, que, demonstrar felicidade em público era, quase, umafraqueza. Era adepto das novas tecnologias de comunicação e asusava para sempre estar por perto da sua família. Seu Augustocobrava de seus filhos que eles fossem perfeitos. Exigia que suaesposa fosse discreta, e que sua faxineira usasse o uniforme sempreimpecável. Seus pais o chamavam de Augustinho, forma que ele nãopermitia que mais ninguém se referisse a ele.

Para os vizinhos, Seu Augusto era só um acadêmico, do tipo caxiasmetódico estudioso. Alguém que durante a faculdade não foi fundona vida. Quando era garoto nunca roubou um salgado da padaria. Naescola deve ter sido daquela tribo dos inteligentes que passamdesapercebidos. Se mantinha longe de confusões e não se intrometianuma injustiça que não tinha sido cometida contra ele. Tinhacrescido sem privações ou felicidade. Nunca era visto do lado defora da casa ou do carro. Era a favor do impeachment, desde que issofosse para mudar alguma coisa. Jogava xadrez, mas não consideravaisso exatamente um esporte. Achava que Darcy Ribeiro e Paulo Freireeram agitadores. Seu Augusto não morreria por nenhuma causa nemninguém.

Aprovava o casamento homossexual, desde que não fossem seus filhos.Era contra o aborto e a legalização da maconha, mesmo sem saber bemo porque. Via a publicidade como algo perverso, mas gostava deassistir o jornal. Costumava resmungar baboseiras enquanto viatelevisão. Pagava seus impostos em dia e dizia que sonegadorestinham que queimar no inferno. Pedia CPF na nota fiscal toda vez quecomprava alguma coisa. Gostava de O Processo e não entendia AMetamorfose. Respeitava hierarquias, e não fazia qualquer coisa quepudesse ser considerado errado perante a lei. Pensava que segurançaera sinônimo de polícia na rua e bandido na cadeia.

O léxico de Seu Augusto era quase completo, e seu portuguêsperfeito. Não era obsessivo com limpeza nem organização, apesar desuas coisas estarem sempre limpas e no lugar. Fazia trabalhovoluntario num asilo com receio de estar lá um dia. Gostava decuidar de seu jardim e reciclava o lixo. Achava que diversão eraacordar cedo e tomar café da manhã ao ar livre, ante de ler um bomlivro. Não gostava de encontrar amigos antigos, nem de fazer novos.No trabalho os alunos zombavam dele por suas costas, os colegaspreferiam não chegar muito perto. Tinha uma cordialidade formal quenão deixava nem ele a vontade. Um dia Seu Augusto estava voltandopara casa, depois do trabalho, e passou por cima de uma mendigo quepedia no semáforo. Estava chovendo, mas ele viu, e não parou. Sóacelerou e seguiu em frente.


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