Cap. 8 - São Factos

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-Vamos. Podemos ir a pé até minha casa, é perto- disse Kaya, séria.
Tudo era perto em Springton, era uma cidade muito pequena com poucos habitantes.

Assenti e andámos na direção oposta do restaurante.
Sabia que Kaya me ia explicar tudo. Era sempre assim, até ela se ter ido embora.

Segui-a em silêncio pelas ruas húmidas e cinzentas da cidade.

-Eu já não estou a viver com a Carmen- explicou Kaya, com uma normalidade incomum- É uma longa história. Já te explico.
Dito isto,parou de andar e destrancou a porta de uma casa cinzenta com a pintura lascada.

Devia ter-me apercebido de que a casa de Carmen era na zona oeste da cidade e não a sul, mas eu era demasiado lenta para compreender isso.
Concerteza aquela não era a casa de Carmen.

Entrámos na casa dela. Comum, arrumada e simples. Típico de Kaya.

-Queres beber alguma coisa?- perguntou, fechando a porta.
-Não obrigada- respondi, num tom neutro- Vamos diretas ao assunto, Kay.

-Eu não sei por onde começar...- sentámo-nos no sofá preto da sala e vi-a morder o lábio.
-Pelo início, talvez.

-Bem -Kaya clareeou a garganta e eu endireitei as costas- Eu nunca te contei, mas... O meu pai começou a ficar violento e a chegar a casa bêbado, mais ou menos um ano antes de eu me ter ido embora. Não te contei nada porque tinha medo, Mia. Medo e vergonha.

-Porquê medo? Eu podia ter-te ajudado, Kay.

-Éramos só miúdas, Mia- ela inspirou fundo e fechou os olhos.

-Podíamos ter contado a alguém- ripostei.

-Eu sei, mas...Eu não conseguia - uma pausa- Continuando...Eu e o Lou já estávamos a ficar fartos da mesma merda todas as noites, parecia que nunca ia acabar...Os gritos, Mia, os gritos eram o pior. Nós vivíamos com um monstro. Felizmente, a nossa tia descobriu tudo. Ficámos a viver com ela nos últimos dois anos e meio. A Carmen e o Lawrence divorciaram-se. Ela pô-lo fora de casa. E um tempo depois nós voltámos. Eu não consegui voltar para aquele sítio. Não com todas aquelas memórias. Por isso agora estou a viver aqui.

-Eu...Lamento muito, Kaya. Eu não sabia.

-Tive tantas saudades, ruiva- senti o meu corpo ser esmagado contra o seu num abraço apertado.

Eu nem queria imaginar como se sentiria Kaya agora. Não ter coragem de viver na mesma casa que a própria mãe por causa de memórias.
Eu sabia que, por dentro, ela estava destruída.

-Ainda estou chocada, Kaya... Não consigo aceitar...

-São factos, Mia, tens de os aceitar.

Eram Factos. De verdade.
E eu não tinha que fazer outra coisa senão aceitar.

Na maioria das vezes eu podia ser uma pessoa irritante, provocadora e cabeça-quente, mas eu também tinha sentimentos.
Eu importava-me com coisas clichés e tinha pena de cachorrinhos abandonados.
Claro que eu tinha.
Eu ainda era um ser humano.

-E o Lou?-tentei quebrar o ambiente silencioso, onde apenas se ouviam as nossas espirações.

-Ele está bem, eu acho. Aceitou ficar com a nossa mãe. Não a queria deixar sozinha.

Era um pouco egoísta da parte de Kaya ter deixado a mãe nos braços do irmão. Ambos a viver naquela casa onde passaram noites de terror.
Mas eu não a culpava.

Era horrível e eu teria feito o mesmo.

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