Viver é foda

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Sofria o que hoje chamam de bullying, expressão de língua inglesa que se tornou universal como o hot dog. Bullying vem de bully que, em português, significa valentão, brigão, fodão. Especialistas avisam que quem é vítima de bullying pode desenvolver uma série de distúrbios psicossociais graves e, na manhã de uma segunda-feira qualquer, acordar com vontade irrefreável de se vingar da humanidade: pow! pow! pow! – corpos ensanguentados pelo chão, humanidade em choque. Pois bem, reitero o que disse: sofria bullying. Mas lá na longínqua década de 1980, ninguém falava sobre o assunto. Nem sei que nome utilizavam para caracterizar intimidações e agressões que ocorriam contra meninos e meninas que não se encaixavam em determinados padrões de comportamento seguidos pela maioria. Só sei que a perseguição a desajustados de todo tipo já existia. Afirmo isso porque eu era um desses desajustados. Calado, retraído e pouco interessado em interagir socialmente, passava a maior parte do meu tempo sozinho, alheio a tudo. Alguns garotos, desconheço a razão, não gostavam de mim por eu preferir viver à margem, sem me envolver com os acontecimentos ao meu redor, e não perdiam a oportunidade de me perturbar com provocações. Era assim naquele tempo, continua sendo assim hoje e permanecerá assim sempre. O mundo não é nem nunca será um lugar justo e, por mais que os tolos insistam em repetir que "somos todos iguais", acredite: não somos. Uns são melhores do que outros: mais inteligentes, mais bonitos, mais competentes, mais fortes, mais endinheirados. Isabela, por exemplo, não era igual a nenhuma outra garota da idade dela e, por esse motivo, eu a admirava e a queria perto de mim. Isabela foi a única que me acudiu quando reagi às ameaças e aos xingamentos de Patrick e seu bando. Cansado de ser espezinhado gratuitamente por eles, resolvi enfrentá-los. Levei a pior, claro. Saí da briga com o corpo cheio de hematomas, arranhões e o nariz sangrando. Caído na calçada em frente da escola, vi quando a pequena multidão que se juntara para assistir – e, mais do que isso, incentivar – a pancadaria começou a se afastar, rindo e debochando de mim. Foi aí que Isabela surgiu e foi a partir daquela manhã de maio de 1985 que nos tornamos amigos inseparáveis. Ela me ajudou a levantar e, com fisionomia honesta de preocupação, perguntou se eu estava bem. Não, eu não estava bem. Acabara de ser espancado por quatro garotos e, além da vergonha moral, sentia dores pelo corpo todo.

De pé, tentei ocultar aquele terrível sentimento de humilhação, fingindo algum amor-próprio.

"Não foi nada. Estou bem", respondi.

Isabela abriu um breve sorriso e retrucou: "Não parece".

Eu desviei os olhos dela.

"Seu nariz", ela disse.

"O que é que tem?"

"Tá sangrando."

Eu limpei o sangue com a manga da camisa.

"Tá doendo?", ela perguntou.

"Vou sobreviver", respondi.

Período de transição entre a infância e a vida adulta, a adolescência é espécie de limbo existencial, um depósito úmido e fedorento de almas inúteis. Adolescentes são detestáveis criaturas inacabadas, em processo de formação e sem função nenhuma para a humanidade. Vagam à toa pelo mundo em busca de sentido para suas vidas futuras e são capazes de cometer as mais cruéis barbaridades apenas por diversão. Em 1985, eu era um adolescente inútil de 14 anos. Isabela era um ano mais que velha que eu. Ficamos amigos porque ambos tínhamos hábitos solitários e ambos enxergamos um no outro a mesma insatisfação que nos mantinha à distância segura do ambiente barulhento e estúpido que nos asfixiava. Pertencíamos ao grupo de "esquisitos" da escola, mas não movíamos um dedo para mudar essa imagem e não usávamos o bullying como pretexto para posar de vítimas e choramingar por mais afeto. Eu, na maior parte do tempo, admitia os sofrimentos da existência com resignação. Isabela, ao contrário de mim, reagia às ofensas. Não permitia que ninguém zombasse do seu comportamento esquivo e do seu visual desleixado. Isabela detestava coisas de menina. Não se maquiava, só calçava tênis e botas pretas, vestia-se com roupas largas para camuflar suas formas femininas. Para completar a caracterização da garota indócil, vivia mascando chicletes Ping Pong com indolência desafiadora.

Isabela pegava o mesmo ônibus que eu para voltar para casa. Estranhei nunca a ter visto antes. Ela, porém, disse que me conhecia há algum tempo.

"Sou amiga do Vicente, aquele garoto ruivo que estuda na mesma sala que você."

Vicente era o aluno mais inteligente da minha turma. Sentava-se na primeira fileira de carteiras, de frente para a mesa do professor. Nunca conversara com ele e jamais poderia imaginar que uma garota como Isabela fosse sua amiga.

"Eu sei. O Vicente não é muito legal. Mas eu também não sou. E nem você é."

De fato, não éramos legais. Mas Vicente eu considerava bem pior. Ele representava tudo aquilo que mais me causava aversão em uma pessoa. Era arrogante, egocêntrico, manipulador, extremamente vaidoso e competitivo. Nas aulas, empenhava-se em exibir sua perspicácia intelectual só para constranger os demais alunos e impressionar os professores.

"Sei disso tudo, mas o Vicente não é sempre assim. Pode acreditar", contemporizou Isabela.

Estávamos no ônibus, voltando para casa.

"Desço no próximo ponto. A gente se vê amanhã na escola."

"Tá legal."

Isabela desceu cinco quarteirões antes de mim. No restante do trajeto, enquanto observava a cidade pela janela imunda do ônibus, relembrei a surra que levara de Patrick e seu bando. Fora uma surra dolorida, sem dúvida, e eu ainda sentiria os efeitos daqueles socos e pontapés durante dias. "Foi estupidez enfrentar aqueles caras", reconheci. Por outro lado, se não tivesse brigado, e apanhado muito devido ao meu atrevimento, não teria conhecido Isabela. "Ah, então valeu a pena!", comemorei.

Isabela era uma garota comum. Bonita, mas comum. Magra, pequenina, devia ter, no máximo, 1,65 de altura, rosto triangular, fronte alta, pele branquíssima, cabelos castanhos levemente ondulados, olhar inquieto e perscrutador. Caminhava com preguiça, quase arrastando os pés, e falava rápido, engolindo as vírgulas. Alternava momentos de doçura e agressividade em igual medida. Às vezes, estendia a mão; outras vezes, estapeava. E eu nunca consegui decidir de qual dessas duas Isabelas gostava mais.


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