Cortaram meus braços

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Era noite calorenta, com temperatura acima dos 30o C. Estava na praia, onde assistira aos shows de um festival só com bandas de rock locais. Febril, Isabela não pode ir. Ao fim das apresentações, peguei o ônibus para voltar para casa e nem notei que Patrick e seu bando subiram no mesmo veículo. Passei pela catraca e ocupei um dos bancos. Foi aí que, ao ouvir risadas ruidosas e desagradáveis vindas do fundo do ônibus, olhei para trás e avistei os quatro garotos. Eles pagaram a passagem, atravessaram a catraca e se sentaram bem atrás de mim. Subitamente, os quatro se calaram, e aquela quietude me pôs em suspense assustador. Eu quase conseguia escutar a respiração deles. Se fosse um trapaceiro podia posar de valente e inventar que não temia Patrick. A verdade, no entanto, é que estava com o cu na mão, aterrorizado pelos acontecimentos que viriam a seguir. Foram os 30 minutos mais longos e angustiantes da minha vida. Assim como o condenado à pena capital que sabe, de antemão, dia e hora em que vai ser executado, e percorre o corredor da morte com os nervos em frangalhos, eu sabia que, ao descer do ônibus, seria devorado vivo por aqueles garotos. Comecei a suar de pavor. Minhas pernas fraquejaram. Contraído, meu estômago doía. Desde o início das aulas, vinha me preparando para aquele embate, murmurando a mim mesmo que era melhor ser surrado de uma vez do que viver com receio de ser surrado a qualquer hora. "Se for para acontecer, que aconteça logo!", bradava. Mas uma coisa é a ideia do fato; outra, bem diferente, é o fato em si. E, naquele momento, estava diante do fato, cara a cara com o inimigo, a poucos minutos de ser espancado – e todas as minhas certezas desabaram. Por saber que não escaparia ileso da vingança de Patrick, acreditava que o enfrentaria com algum brio, com algum resto de bravura quando chegasse o Grande Dia. Bobagem. Tudo que senti naquele ônibus foi medo, muito medo.

Levantei para desembarcar no próximo ponto. Patrick e seu bando fizeram o mesmo e se posicionaram tão próximos de mim que o calor dos seus corpos queimavam o meu. O ônibus parou, o motorista abriu a porta e eu não consegui me mover.

"Não vai descer, garoto?", alertou o motorista.

Respirei fundo e, numa tentativa desesperada de me salvar, saltei pela porta do ônibus e corri o mais rápido que meus pulmões permitiam. De nada adiantou. Sedentário, sem condicionamento físico para disputar corrida com Patrick e seu bando, fui alcançado com facilidade. Eles me encurralaram contra a parede e, sem demora, iniciaram a pancadaria. Foi tanta bordoada em sequência que nem tive tempo de sentir dor. Lembro que caí e, caído no chão, com o corpo encolhido para me proteger, levei um bocado de pontapés, e deve ter sido um desses chutes que fez eu perder a consciência, desfalecer.

Patrick, enfim, estava vingado, e eu, livre do medo.

Quando recuperei os sentidos, estava deitado na cama de um quarto de hospital. Sobrevivera ao ataque e, agora, jazia em lugar seguro. Tem gente que não gosta de hospital. Eu gosto. Acho tranquilizador saber que estou em um local onde há uma equipe de enfermeiras dedicadas para me acudir a qualquer hora do dia ou da noite; onde as minhas dores são controladas com remédios poderosos; onde posso ficar isolado do mundo lá fora.

Meu pai me contou que foi um amigo dele que mora perto da nossa casa quem acionou o serviço móvel de emergência após me encontrar desmaiado na calçada. Avisado por esse amigo, meu pai saiu desembestado pela rua e alcançou o local onde eu estava em menos de cinco minutos. Ao me ver, disse que sentiu uma dor tão forte no coração que pensou que ia enfartar. O resgate, enfim, chegou e, enquanto os paramédicos me socorriam, meu pai ligou do telefone público para minha mãe, informou que me acompanharia na ambulância e pediu para ela pegar o carro e ir direto para o hospital. Minha mãe não atendeu ao pedido do meu pai. Esperou o dia clarear, deve ter tomado o seu café da manhã sem pressa e só depois foi me ver. Quando despertei, ela já tinha voltado para casa.

Isabela foi me visitar e, pela sua expressão horrorizada ao me ver, percebi que o estrago no meu rosto tinha sido grande.

"Foram eles?"

Movi a cabeça afirmativamente.

"Que covardes filhos da puta! Você precisa denunciar esses caras, Otávio! Sei lá, deve haver algum jeito de punir esses babacas!"

"Melhor não, Isa. Se denunciar, se falar que foram eles que me espancaram, eles vão vir atrás de mim de novo e de novo, e essa perseguição não vai acabar nunca."

"Mas..."

"Eu tô bem, Isabela. Todo quebrado, mas vivo. E é isso que importa, não é?"

Eu não mentia. Não afirmava que estava bem só para acalmar Isabela. Apesar das dores pelo corpo, realmente experimentava uma paz profunda, como se a surra que levara tivesse extirpado de mim todos os medos, aflições, culpas. Talvez fosse o efeito anestésico dos remédios, mas, durante o tempo em que fiquei no hospital, desliguei o meu cérebro, sosseguei meu espírito, descansei de mim ao som do álbum The Unforgettable Fire. Ouvia Bono cantar "Bad" e desaparecia em meio à melodia da mais linda canção do U2.

If I could, you know I would

If I could, I would let it go

Infelizmente, após alguns dias de internação, o médico me deu alta, e, para mim, sair do hospital e voltar para casa era como ser expulso do paraíso e enviado ao inferno, ao mundo real, às chateações da vida. Para piorar, teria que permanecer em repouso, e isso significava que ficaria sob os cuidados da minha mãe. Não serei cretino. Ela até se esforçou para me agradar, cozinhando as comidas que eu mais apreciava e, na medida do possível, tentou ser atenciosa comigo. Constrangedor foi ter que tomar banho com o auxílio do meu pai. Enquanto ele se despia sem embaraço, eu não conseguia disfarçar a vergonha de ficar nu na frente dele.

"Otávio, já vi você pelado milhares de vezes."

"Eu era criança."

"Sim, você era criança e, hoje, é um rapaz. Mas continua sendo meu filho do mesmo jeito."

Meu pai se divertia com a minha timidez. Era um homem bom. E sua bondade reluzia em seus olhos negros e levemente amendoados, em sua feição tranquila, em seu sorriso bonito e acolhedor. Ele não me ajudava no banho por obrigação, mas por amor sincero – e lavava os meus cabelos com afeto comovente.

Essa experiência, além de me aproximar um pouquinho mais do meu pai, serviu para eu compreender que, afinal, não somos tão autossuficientes como a nossa soberba nos faz crer. Há situações em que somos apanhados pela impotência, pelo desamparo, e dependemos da assistência, do cuidado, da compaixão do outro para sobreviver. Por sorte, naquela circunstância de incapacidade, tinha meu pai para me apoiar e lavar os meus cabelos.

Dotanto de porrada que levei de Patrick e seu bando, as sequelas podiam ser bemmais graves. Por milagre, como resultado do espancamento (fora os cortes,inchaços e hematomas), perdi apenas um dente, fiquei com uma pequena cicatrizno lado direito do pescoço e meu braço esquerdo foi quebrado em dois lugares.Voltei às aulas duas semanas depois do ocorrido, ainda com o braço engessado e machucadosvisíveis no rosto. Quando me viu, Patrick, ao invés de agir como antes e meencarar e provocar, virou a cara e continuou conversando com seus comparsas. Eutambém o ignorei. Para mim (e talvez para ele) nossos conflitos estavamresolvidos.


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