Da virtude que perdemos

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Receosos, eu e Isabela entramos em um pequeno mercado, desses com mercadorias empoeiradas e amontoadas de forma desordenada nas prateleiras, e compramos uma garrafa de vinho barato e um maço de cigarros. Resolvemos que já era hora de começarmos a beber e a fumar. Como se sabe, é proibido vender bebida alcoólica e cigarro para menores de idade, mas a mulher magricela, com expressão de enfado, que estava no caixa nem se deu ao trabalho de olhar para a nossa cara. Pegou o dinheiro, contou, devolveu algumas notas de troco e voltou a lixar as unhas. Saímos do mercado em êxtase, como crianças que escapam do castigo depois de cometerem uma travessura. Fomos direto para o Morro do Farol. Garoava e, provavelmente, o lugar estaria vazio. Dito e feito. O Morro do Farol era todo nosso. As primeiras tragadas no cigarro foram horríveis. O gosto era ruim, engasgávamos com a fumaça. Decididos a incluir o cigarro ao nosso repertório de rebeldias inúteis, insistimos até aprendermos a tragar sem engasgar. Já o vinho bebemos sem sobressalto e logo senti uma leve e gostosa embriaguez que foi aumentando a cada gole. Nunca experimentara sensação de entorpecimento igual. De repente, todos os nós dentro de mim desataram, o universo ao meu redor desacelerou, meu corpo foi tomado por uma agradável e alienante indolência. Com os sentidos amortecidos, a mente expandida, deitei sobre a grama e cerrei preguiçosamente os olhos. Me sentia desconectado da realidade, desligado de mim e das minhas aflições. Ali, descobri que necessitamos do álcool para escapar do tédio, para suportar o peso da existência, para nos reabastecer de Deus e ter forças para seguir em frente. Aquelas horas de alheamento, de ausência, de prostração me fizeram enxergar além do mar, do céu, das árvores, das nuvens, dos pássaros, das ruas, dos edifícios, dos meus pequenos problemas. Meia garrafa de vinho fora suficiente para eu enxergar além das coisas visíveis e palpáveis. Estava em estado de arrebatamento total. Encontrara uma saída de emergência por onde fugir toda vez que o mundo desabasse sobre a minha cabeça.

Isabela não experimentou o mesmo entorpecimento que eu. Seu organismo era mais resistente ao álcool. Ela precisava de mais, muito mais que meia garrafa de vinho para se livrar completamente de si mesma. De qualquer forma, também estava com os sentidos um tanto alterados e, sem explicar o motivo, sugeriu que fôssemos à casa de Vicente. Topei na hora. Acho que, no meu estado de enlevação, toparia qualquer maluquice que Isabela propusesse.

Tocamos a campainha da casa de Vicente. Aguardamos alguns segundos até a mãe dele vir abrir a porta.

"O Vicente taí?", perguntou Isabela.

"O que vocês querem com ele?"

"Não é da sua conta! A gente quer falar com o Vicente!"

A mulher arregalou os olhos de espanto e imediatamente percebeu que não estávamos em nossas condições normais.

"Vocês estão bêbados?!"

"Só um pouquinho", respondi, com um riso bobo no rosto.

"Acho melhor vocês irem embora pra suas casas."

Isabela perdeu o controle.

"A senhora é uma escrota, sabia?! O Vicente é nosso amigo. Por que a senhora afastou ele da gente?!"

Escandalizada, a mãe de Vicente fechou a porta na nossa cara. Isabela ainda berrou:

"Sua velha idiota!"

Isabela quis ir à casa de Vicente só para xingar a mãe dele, soltar a raiva que estava entalada em sua garganta – e o álcool sempre ajuda a liberar sentimentos que, sóbrios, não temos coragem de manifestar publicamente. Isabela não se conformava com a atitude arrogante da mulher, não aceitava ser julgada como pessoa menor – nem pela mãe de Vicente nem por mais ninguém. Percebi que o álcool agia de forma diferente em Isabela. Enquanto, em mim, provocava calma e entorpecimento; nela, expandia seu temperamento agressivo.

Exaustos e sob o efeito entorpecedor do vinho fomos embora. Tudo que eu queria era me jogar na cama e dormir dois dias seguidos.

Foi uma noite de terror. Efeito do vinho vagabundo, claro. Passei mal, vomitei inúmeras vezes no chão do quarto. Meu pai veio me socorrer. Tirou a minha roupa e me colocou embaixo do chuveiro. A água gelada chicoteou meu corpo e eu, com o estômago revirado, sentia que aos poucos voltava da minha viagem maravilhosa ao mundo do esquecimento, da ausência de controle. Na manhã seguinte, tive que ouvir um longo e aborrecido sermão do meu pai sobre os malefícios do álcool. Sobre os benefícios, no entanto, ele nada falou. Meu pai, para relaxar, bebia sua dose de uísque toda noite. Mas pais precisam desempenhar seu papel de pais responsáveis e brigar com filhos que se embebedam numa tarde nublada de sábado. Minha mãe não se envolveu com o meu primeiro porre. Se limitou a me olhar com sua conhecida indiferença.

Ignorei os conselhos do meupai. Daquele dia em diante, cigarro e álcool entraram de vez na minha vida – ena vida de Isabela. O cigarro me acalmava; o álcool me libertava de mim.


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