Tire suas mãos de mim

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Contei a história da minha mãe para Isabela. Ela ouviu em silêncio, com interesse, sem me interromper. Assim que finalizei o relato, ela tentou me confortar.

"Não é só você que tem mãe problemática."

Nesse instante, a mãe de Isabela entrou no quatro. Trazia uma bandeja repleta de doces e minisanduíches, e uma pequena jarra de vidro com um líquido vermelho dentro.

"Crianças, vocês devem estar com fome!"

A mãe de Isabela nos chamava de "crianças" e parecia uma personagem de desenho animado, não uma pessoa real. Ela devia ter uns 40 anos, estava sempre muito maquiada e com os cabelos loiríssimos presos em um rabo-de-cavalo, o que lhe dava um aspecto jovial. Vestia-se como uma garota de 20 anos, tinha a voz fina e infantilizada, movia-se com afetação e nos tratava como se eu e Isabela fôssemos dois pirralhos do jardim de infância.

"Belinha, querida, serve o seu amiguinho, tá?"

Visivelmente constrangida, Isabela foi até a porta e, com expressão trombuda, mandou a mãe sair do quarto. A mulher não se mostrou ofendida com a atitude da filha. Sorriu com alegria, deu um leve toque com o dedo indicador na ponta do nariz de Isabela e, saltitante, desapareceu pelo corredor.

"Se você algum dia me chamar de Belinha eu arranco a sua cabeça fora!", ameaçou Isabela, séria, após fechar a porta do quarto.

Eu me segurava para não rir e Isabela percebeu.

"Pode rir. Minha mãe é ridícula mesmo!"

Consegui me conter. Não ri nem fiz qualquer comentário sobre a mãe de Isabela, e entendi o que ela queria dizer ao me informar que não era só eu que tinha mãe problemática. Bebi o líquido vermelho da jarra, era groselha, e experimentei os doces e minisanduíches. Embora lembrassem comida de brinquedo, de tão coloridos e enfeitados, estavam bem saborosos.

"Você conhece essa banda?", perguntou Isabela, mostrando a capa de um disco.

"Legião Urbana. Não."

Isabela colocou o disco para rodar no aparelho de som – uma vitrola portátil de plástico, amarela e preta, com qualidade de som sofrível – e pediu para eu prestar atenção nas letras das canções.

"Acho que você vai gostar", previu.

Em 1985, ainda não existia CD, muito menos MP3. Eram discos de vinil, de 12 polegadas, chamados de LP (long-play) e separados em lado A e lado B. Também havia o compacto simples, de 7 polegadas, contendo duas ou quatro canções. Quando um lado terminava de tocar, era preciso virar o disco para ouvir o outro lado. O álbum de estreia da Legião Urbana era dividido assim:

Lado A:

1. Será

2. A Dança

3. Petróleo do Futuro

4. Ainda é Cedo

5. Perdidos no Espaço

6. Geração Coca-Cola

Lado B:

1. O Reggae

2. Baader-Meinhof Blues

3. Soldados

4. Teorema

5. Por Enquanto

Sentado no chão do quarto de Isabela, com as costas apoiadas na parede e o encarte do disco nas mãos, levei um susto que fez meu coração disparar quando ouvi a primeira estrofe de "Será", a canção que abria o lado A do álbum:

Tire suas mãos de mim

Que eu não pertenço a você

Não é me dominando assim

Que você vai me entender

Foi amor imediato. Amor verdadeiro. Aquele cara de voz grave cantava para adolescentes como eu, cantava de um jeito simples e direto, cantava sobre as minhas dúvidas, os meus medos, as minhas insatisfações. Naquela tarde, eu e Isabela rodamos o disco repetidas vezes e anotamos em uma folha de papel os versos que mais nos emocionavam. Escolhi já estou cheio de me sentir vazio, de "Baader-Meinhof Blues", como o meu verso preferido. Isabela indicou vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês, de "Geração Coca-Cola". Ela até parou de beber esse refrigerante depois que ouviu a canção. Disse que não aceitaria mais ser programada. Eu achei graça daquela rebeldia juvenil de Isabela e reparei que os versos que escolhemos como preferidos ressaltavam as diferenças entre nós, entre os nossos modos de encarar a vida. Isabela tinha raiva do mundo; eu, preguiça. Isabela era punk; eu, pós-punk. Enquanto ela almejava derrubar reis; eu queria apenas dar um tempo, ficar sentado diante da televisão, assistindo aos filmes da Sessão da Tarde, esperando a hora passar.

Naquela noite, pedi dinheiro para o meu pai. Expliquei que precisava comprar com urgência o disco de uma nova banda de rock de Brasília, chamada Legião Urbana.

"Filho, por que você não ouve Beatles? É rock também. E aposto que é bem melhor que essa banda aí."

Meu pai tinha a discografia inglesa completa dos Beatles. Eram 13 LPs, de "Please Please Me", de 1963, a "Let it Be", de 1970. Todo sábado de tarde, sozinho na sala, ele ouvia um dos discos, sempre seguindo a ordem cronológica de lançamento dos álbuns. Quando terminava de ouvir o último, no 13o sábado, voltava ao primeiro, e assim sucessivamente. Era o seu "Momento Beatles", um ritual que ele repetia com prazer há anos. Eu nunca ouvira com atenção aquelas canções. Por meu pai gostar tanto do grupo, achava que eu não devia gostar. Naquela época, ainda havia um saudável conflito musical de gerações. De modo geral, pais curtiam "velharias"; filhos, "novidades". E, nessa questão em particular, não existia entendimento possível. Hoje, pais e filhos vão juntos a shows de sertanejo, axé e pagode.

Meu pai profetizou.

"Um dia você ainda vai gostar dos Beatles."

E ele estava certo. Mas sófui descobrir a genialidade de John, Paul, Ringo e George anos depois.    


Gente legal não gosta de Legião UrbanaOnde histórias criam vida. Descubra agora