Abrigo e proteção

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Na segunda-feira, primeiro dia de aula, Isabela não apareceu na escola; nem Vicente; e, para meu desafogo, também não avistei Patrick e seu bando. Aqui e ali, como era comum ocorrer na volta às aulas, ouvia trechos de relatos dos estudantes sobre o que tinham feito nas férias. A maioria viajara com os pais para a casa de familiares, uns poucos permaneceram na cidade, outros embarcaram para algum país distante e todos competiam entre si para ver quem havia vivenciado a aventura mais emocionante, ganhado o presente de Natal mais sensacional, conhecido o lugar mais incrível.

"E você, Otávio, fez o quê?", perguntou Mariana, a menina de expressão idiota que sempre trazia lembrancinhas para os professores quando o ano letivo se iniciava.

"Nada", respondi, e voltei à leitura da Bizz, uma revista sobre música que eu e Isabela comprávamos todo mês.

Nunca fui aluno aplicado. Estudava apenas o suficiente para atingir notas médias e passar de ano. O ambiente escolar, para mim, era um inferno, com aquele bando de adolescentes estúpidos falando aos berros e ao mesmo tempo. Quando me sentia incapaz de suportar essa tagarelada, fugia, pulando o muro da escola, e ia caminhar pela cidade até dar o horário de voltar para casa. Naquele primeiro dia de aula, sem Isabela e Vicente para me fazer companhia, resolvi cair fora e fui até um parque próximo, situado a cinco quarteirões da escola. O parque estava quase deserto. Me sentei à sombra de uma árvore e segui lendo a Bizz. Adormeci. Ao despertar, o rapaz já estava sentado à minha frente. Levei um susto ao vê-lo.

"Acho que você estava tendo sonhos eróticos", avisou o rapaz, com um sorriso sacana no canto da boca.

"Eu?", perguntei, ainda desnorteado pelo sono.

Com os olhos, o rapaz indicou o volume sob a minha calça. Envergonhado, ajeitei o corpo e encolhi as pernas para esconder o meu rijo estado de excitação.

"É normal ter ereções durante o sono", observou o rapaz.

O nome dele era Flávio, tinha 21 anos, morava ali perto e, após conversarmos por um tempo, cheio de intenções safadas, ele propôs irmos ao seu apartamento. Vacilei por um minuto ("Não posso fazer isso!"), mas não consegui resistir ao encanto de Flávio e fui, cedendo ao instinto. Lembro que meu coração batia acelerado, minhas mãos suavam, meus olhos tremiam de nervosismo. Sentia uma mistura angustiante de medo e prazer. Parte de mim queria debandar dali, escapar, bloquear o desejo que me consumia; a outra parte ansiava por se entregar, ceder àquela pulsão violenta de ser tocado por Flávio. O prazer, enfim, suplantou o medo, e eu fiquei, me deixei levar pela vontade, permiti que Flávio guiasse os meus sentidos, ignorei os alertas de perigo que piscavam com insistência dentro da minha cabeça. Sabia que podia ser perseguido, excomungado, assassinado por fazer "aquelas coisas". Sabia da intolerância contra os homossexuais, e sentia vergonha e nojo de mim por nutrir esse desejo. "Por que eu sou assim? Por que tenho esse desejo?", me questionava a todo instante, tentando compreender o que acontecia comigo, que hormônios eram aqueles que me conduziam para o "pecado". Eu via o desprezo das pessoas (na escola e fora dela) quando se referiam às bichas e ficava em pânico só de imaginar que alguém pudesse me descobrir. "É só uma fase! É só uma fase!", repetia para mim mesmo com o objetivo de me convencer de que logo estaria "curado" dessa "enfermidade" odiosa; liberto desse "desvio" moral que me amargurava.

Com Flávio, tive a minha primeira e conturbada experiência sexual. Tocar e ser tocado por outro menino era algo que ansiava e rejeitava com a mesma força. Algo que, depois de realizado, me encheu de culpa.

Ao chegar em casa, fui direto para o banheiro. Me despi e, agoniado, me posicionei debaixo da água gelada do chuveiro. Esfreguei meu corpo com força para me livrar do gosto e do cheiro de Flávio. Queria esquecer aquele encontro, deletá-lo da memória. "Mas como esquecer algo que me propiciara tanto prazer?".

Flávio era de Minas Gerais. Tinha se mudado para a cidade há um ano para estudar na universidade pública local. Cursava arquitetura e vivia numa quitinete bancada por seu pai. Era um rapaz bonito, magro, com olhos e cabelos negros, trejeitos delicados.

"Fica com o meu telefone. Se quiser me ligar..."

Essa foi a última frase que ouvi de Flávio após ele abrir a porta da quitinete para eu sair. O pedaço de papel com o número do telefone dele estava no bolso da minha calça. Peguei o papel, amassei e o joguei no cesto de lixo do meu quarto. "Não vou ligar para ele. Essa foi a primeira e a última vez que...". Mesmo depois do banho eu me sentia sujo, impregnado pelo cheiro de Flávio. Fui até a cozinha para beber um copo de água. Encontrei minha mãe. Ela olhou para mim de um jeito desconfiado.

"Que foi?", perguntei.

"Nada. Só achei estranho você tomar banho a essa hora."

"É que está muito calor", expliquei.

"O almoço está pronto faz tempo. Onde você estava?"

"Por aí."

"Vou esquentar a comida."

"Não precisa. Tô sem fome", avisei, mantendo-me o mais afastado possível da minha mãe.

Voltei para o meu quarto. Tinha a impressão que exalava o cheiro de Flávio pela casa e que minha mãe poderia senti-lo caso se aproximasse de mim. Mas era a culpa que me corroía. Culpa por ter aceitado ir ao apartamento dele. Culpa por ter cedido àquele desejo asqueroso. Culpa por ser quem eu era. Um sentimento penoso de autorrejeição começou a me dominar e me odiei como nunca antes. Queria desaparecer para sempre. Sumir. Me enfiar em um buraco e nunca mais sair de dentro dele. São conflitos desse tipo – de sentir que não pertencemos a este mundo que nos rejeita – que devem levar meninos e meninas ao suicídio. "Cortar os pulsos, quem sabe...", cogitei, sem muita convicção. Eu me negava veementemente a virar bicha. Não aceitava a ideia de passar pelo vexame de ser apontado na rua como veado. "Não, preciso resistir a esse desejo! Preciso expurgá-lo de mim!". O problema é que, se me perguntassem se havia apreciado estar com Flávio, com sinceridade, responderia: "Sim, eu gostei. Sim, eu me deliciei provando daquele corpo". Algo, no entanto, borbulhava dentro de mim, algo gritava, advertindo que eu devia me reprimir para me proteger. "Nunca mais vou me encontrar com o Flávio!", prometi a mim mesmo.

Naquele dia, ouvi, no volume máximo, Ian Curtis cantar "Isolation" mais de vinte vezes seguidas.

Mother I tried please believe me

I'm doing the best that I can

I'm ashamed of the things I've been put through

I'm ashamed of the person I am


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