A descoberta da amizade

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Minha sorte é que estávamos de férias escolares quando ocorreu o incidente no cinema. Era janeiro de 1986. E a chance de eu esbarrar de novo com Patrick e seu bando pela cidade era mínima. Por um tempo, pelo menos até o início das aulas, sentia-me seguro e, precavido, sugeri a Isabela e Vicente que evitássemos ir ao cinema e ao shopping center, locais onde havia mais probabilidade de sermos surpreendidos por Patrick.

Os três nos encontrávamos quase todos os dias. Vicente gostava de ir a lanchonetes para devorar hambúrgueres. Embora magérrimo, vivia faminto e comia feito um elefante africano. Eu preferia subir o Morro do Farol ao cair da tarde, quando o sol já tinha desaparecido, o calor diminuía e soprava uma brisa reconfortante lá em cima. Isabela exigia que fôssemos toda semana a sua loja de discos preferida para saber dos novos lançamentos. E foi numa dessas idas a essa loja que ela comprou o álbum Never Mind The Bollocks, do Sex Pistols, e descobriu o punk. Para Isabela foi uma revelação. Ela não abandonou a Legião Urbana, mas acrescentou boa dose de agressividade e revolta a sua discoteca básica. Naquelas férias, Isabela também conheceu o Ramones e, ao ouvir o disco Rocket to Russia, apaixonou-se por Sheena, a garota da canção "Sheena is a Punk Rocker".

Em algumas tardes, não íamos para lugar nenhum. Ficávamos um na casa do outro, ouvindo música, papeando à toa, tentando montar o Cubo Mágico. Na casa de Vicente, eu e Isabela éramos forçados a aguentar Beethoven, Mozart, Chopin, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto – verdadeira tortura para nossos ouvidos habituados com os três acordes do rock. Às vezes, Vicente tocava algo no piano. Apesar de não entender bulhufas de música clássica, ficava encantado com a sua desenvoltura no instrumento e, inspirado nele, iniciei aula para aprender a tocar violão. O quarto e o restante da casa de Vicente eram espetacularmente limpos e organizados, com cada coisa no seu devido lugar. Dava até receio de sentar no sofá branco da sala e sujá-lo com as nossas bundas fedorentas. A mãe de Vicente, embora nos tratasse com educação, parecia não gostar muito de mim e Isabela. Ela nos espreitava com certa repulsa. Devia nos considerar sebentos e esquisitos demais para sermos amigos do filho almofadinha dela.

"Sua mãe olha pra mim e pro Otávio como se a gente fosse leproso", acusou Isabela.

"Não exagera!", defendeu-se Vicente.

"Otávio, eu tô falando alguma mentira?"

Odiava quando Isabela fazia isso, obrigando-me a opinar sobre assuntos que não queria opinar. Assim como nunca falei nada sobre o comportamento infantilizado da mãe dela, também não queria falar nada sobre o temperamento entojado da mãe de Vicente. Afinal, minha mãe era tão defeituosa como as outras duas. Mas, pressionado por Isabela, tive que concordar com ela.

"Se vocês pelo menos tomassem banho e penteassem o cabelo, ajudaria", aconselhou Vicente em tom de brincadeira.

"Eu tomo banho todo dia. Quando tá muito calor, tomo dois banhos por dia. Só não gosto de pentear o cabelo", informei.

"Tem alguns dias que fico com preguiça de tomar banho", confidenciou Isabela.

"Sua porca!", xingou Vicente. E caiu na gargalhada.

Eu e Isabela rimos junto com ele.

Por um instante, acreditei que os três seríamos amigos para sempre, que jamais iríamos nos separar. Estávamos à mesa, lanchando. A mãe de Vicente proibia comida no quarto, e os lanches, bem diferentes dos doces e minisanduíches coloridos e enfeitados que a mãe de Isabela nos servia, eram do tipo saudáveis, recheados com coisas verdes e misteriosas.

"Minha mãe é neurótica com esse negócio de alimentação e saúde", explicou Vicente com uma pontinha de insatisfação.

"É por isso que você está sempre com fome e devora todos os hambúrgueres da cidade", observou Isabela.

Discretamente, Vicente confirmou.

Passava das sete da noite quando eu e Isabela fomos embora. Não lembro o motivo, mas, depois daquela tarde, ficamos dois dias sem nos ver. No terceiro dia, Isabela me telefonou e contou que Vicente, de acordo com a mãe dele, tinha viajado para a casa de um primo em Florianópolis e ficaria fora até o fim das férias.

"Somos só nós dois agora", lamentou Isabela.

Combinamos de ir à loja de discos e, depois, ao Morro do Farol.


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