Me fiz em mil pedaços

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Indignada, decepcionada, brava, arredia, sentindo-se desprezada por mim, Isabela parou de atender aos meus telefonemas e, nas vezes em que atendia, falava comigo friamente.

"O que você quer?"

"Eu e o Fabrício vamos hoje à noite ao cinema. Você não quer ir com a gente?"

"Não, obrigada."

"Vamos, Isa!", eu insistia.

"Era só isso? Preciso desligar."

"Tá bom. Se mudar de ideia..."

"Tchau, Otávio."

Achava o comportamento de Isabela infantil. Achava que ela agia desse modo por implicância, por ciúme bobo de Fabrício. Depois, reconheci que fui eu o responsável por afastá-la de mim. Naquela época, jamais admitiria, mas estava perdidamente apaixonado por Fabrício – e a paixão, aprendi mais tarde, cega, destrambelha, abobalha, engole tudo. Por querer estar sempre ao lado dele, abandonei Isabela e nunca consegui me perdoar por isso.

Uma tarde, numa última tentativa de trazê-la de volta para mim, apareci de surpresa na casa de Isabela. Cada vez mais punk, ela ouvia As Mercenárias:

O homem quer subir na vida

Em busca de fama e prazer

Daí encontra com Jesus

E seu espírito de luz vai renascer

Vai se foder!

Salve, salve

A Santa Igreja

Isabela me recebeu com duas pedras na mão.

"O que você veio fazer aqui?"

"Saber como você está."

"Estou bem."

"Isa, o que aconteceu? Por que você não atende mais aos meus telefonemas? Não quer mais me ver?"

"Não aconteceu nada!"

"É por ciúme do Fabrício?"

"Ah, vai se foder, Otávio!"

Depois de mandar eu me foder, Isabela encerrou a nossa conversa aumentando o som da vitrola no volume máximo. As Mercenárias seguiam com o seu ataque à igreja:

O homem consciente dos seus direitos

Com malícia sabe se conduzir bem

Pois esperta é a Santa Igreja

Que graças aos ingênuos sabe viver muito bem

Salve, salve

A Santa Igreja

Devia ter insistido, mudado de comportamento, voltado correndo para Isabela, mas estava viciado em Fabrício, obcecado por ele. Desejava com ardor admirá-lo todo dia, ainda que fosse por um segundo apenas. Fabrício demonstrava sentir essa mesma urgência, esse mesmo descontrole. Se eu não aparecia, ele vinha desesperado até mim. Quando nos avistávamos, éramos arrebatados por uma alegria tão intensa que chegava a doer. Durante semanas, vivemos nesse lodaçal viscoso: asfixiados um pelo outro. E eu, sem poder respirar longe de Fabrício, não procurei mais por Isabela. Por essa razão, me surpreendi quando Samanta veio falar comigo.

"Otávio, você sabe da Isabela?"

"Não. Por quê?"

Samanta era colega de classe de Isabela.

"Ela não vem à escola faz quase duas semanas. Pensei que você... Minha nossa, não é a Isabela ali?"

Ao me virar, avistei uma garota que parecia ser Isabela, só que com os cabelos curtíssimos, raspados bem rentes à cabeça. Era Isabela, uma outra Isabela, uma Isabela que eu, de repente, desconhecia. Ao observá-la, desamparada e sozinha feito bicho acuado, caminhando cabisbaixa, sem a sua habitual altivez, algo em mim se quebrou – e acho que para sempre. Fui tomado pela lembrança do dia em que nos conhecemos, das tardes que passamos juntos, das canções que ouvimos sentados no chão do seu quarto, e uma saudade doída comprimiu meu coração.

Corri até Isabela.

"Oi, Isa, o que houve?"

"Nada."

"Você raspou a cabeça."

"E daí?"

"Você não tem vindo à escola."

"E o que você tem a ver com isso?"

"Quero saber se você está bem."

"Estou ótima!"

"Seu cabelo..."

"Que saco, Otávio! Eu quis cortar. Só isso!"

"Mentira. Aconteceu alguma coisa."

"Preciso ir!"

Antes de Isabela entrar afobada no prédio da escola, gritei:

"Eu vou até a sua casa hoje de tarde!"

Havia algo diferente em Isabela e não era só a sua cabeça raspada. Havia um temor inédito em sua fisionomia, uma dor nova, um jeito de respirar angustiado. Naquela manhã, nem pude prestar atenção à aula. Queria falar com Isabela, saber o que a importunava e, de tarde, como anunciara, fui a sua casa. A mãe de Isabela abriu a porta. Assim que me viu, sorriu feliz.

"Oi, Otávio, você sumiu, menino!"

Ali, diante da felicidade sincera da mãe de Isabela ao me ver, já senti uma fisgada na alma. Acho que era princípio de remorso.

Isabela estava trancada no quarto. Estranhei o silêncio. Pela primeira vez desde o dia em que fora pela primeira vez em sua casa, não havia música a lhe fazer companhia. Bati na porta.

"Isa, sou eu!"

Ela retardou alguns segundos para decidir se devia ou não me receber. Decidiu que sim e, após abrir a porta, com o semblante desinquieto, perguntou o que eu fazia em sua casa.

"Eu disse pra você que viria."

Isabela relutou o quanto pode: esperneou, chorou, disparou dezenas de xingamentos contra mim, mandou eu ir para a puta que me pariu e nunca mais retornar de lá. Desta vez, no entanto, não desisti dela. Fiquei ao seu lado. Sabia que algo grave ocorrera.

"Isa, se você não quiser me contar, tudo bem, eu entendo, mas não vou sair daqui, não vou te largar outra vez."

Mais calma, Isabela desviouos olhos de mim e desabafou.


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