Dois pontos de fuga

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Mais de um mês se passara desde a minha primeira experiência sexual (eu não me permitia usar a palavra homossexual) e, por mais que tentasse eliminar Flávio do pensamento, não conseguia. Lembrava dele quase todas as noites e me debatia de arrependimento por ter jogado no lixo o papel com o número do telefone dele. Sim, eu podia ir direto ao prédio onde Flávio morava, mas não tinha coragem de procurá-lo sem ser convidado. Em algumas manhãs, cabulava aula e ia ao parque onde nos conhecemos com a expectativa de reavê-lo "por acaso". Me sentava à sombra da mesma árvore e permanecia lá por horas, na expectativa, esperando que Flávio surgisse e me convidasse novamente para ir ao seu apartamento. Na hora de voltar para casa, experimentava um misto de frustração e alívio. É que ansiava por rever Flávio, mas, baixinho, no fundo da alma, orava para ele não aparecer. Assim ia adiando aquele encontro até, quem sabe, não desejá-lo mais.

"Você tem faltado às aulas", observou Isabela.

"É, eu sei."

"É por causa do Patrick?"

"Não, não tem nada a ver com esse babaca."

"Algum problema na sua casa?"

"Também não."

"Ai, Otávio, fala logo o que está acontecendo!"

"Eu não posso, Isabela! Não posso falar com ninguém sobre isso. Nem com você! É um problema meu, que só eu posso resolver. E se você soubesse do que se trata, talvez nem ia querer mais ser minha amiga! Vai saber!"

"Nossa, o que você pode ter feito de tão grave? Você matou alguém, por acaso?"

"Antes fosse isso."

Foi o primeiro desentendimento entre mim e Isabela. Não brigamos, mas notei que ela ficou ressentida por eu não desabafar, não compartilhar com ela o meu problema. Para Isabela, se éramos amigos, não devia haver segredos entre nós. Hoje sei que isso é um tremenda asneira. Jamais falamos tudo, jamais expressamos tudo o que sentimos, e não existe relação – nem de amor nem de amizade – sem segredos, mentiras, pequenas traições. Pode ser feio pensar dessa forma, mas necessitamos da omissão, do engodo, da hipocrisia para mantermos o equilíbrio do universo. Se todos soubessem tudo sobre todos, não nos suportaríamos. E se Isabela soubesse que eu transara com um rapaz talvez me expulsasse da sua vida, e eu não estava preparado para correr esse risco.

Falei para Isabela que precisava ir embora. Queria estar sozinho naquela tarde. Ela, um tanto agressiva, me expulsou do seu quarto.

"Se manda, então!"

Na rua, lembrei que estava sem fita-cassete para gravar as canções de "Songs to Learn & Sing", disco do Echo & The Bunnymen. Era a minha banda preferida daquela semana. Amava a voz de Ian McCulloch. Peguei o ônibus e fui ao centro da cidade. O lugar, horrendo como de costume, estava lotado de gente desnecessária. O calor era insuportável – e eu odeio calor, sol, suor, confusão. Fosse outro dia, teria desistido de caminhar por entre a multidão ruminante e fedorenta. Mas acho que estava inclinado a me punir, a me castigar pelos meus maus pensamentos ("Ah, Flávio..."), e me misturei à patuleia linguaruda e apressada. Era atropelado, empurrado, sufocado pelos selvagens, enquanto no walkman ouvia Morrissey perguntar em "Heaven Knows I'm Miserable Now":

Why do I smile

At people who I'd much rather kick in the eye?

Após atravessar o inferno (e sobreviver), cheguei à loja onde sempre comprava minhas fitas-cassetes. O vendedor, um sujeito cabeludo (e chato) com a cara do Doc Brown da trilogia De Volta para o Futuro, já me conhecia e, toda vez que eu ia à loja, insistia para eu comprar álbuns de Bob Dylan, Jimi Hendrix, John Lennon.

"Esses são gênios!", ele exclamava.

Para provocá-lo, rebatia:

"Você sabe que gosto de Legião Urbana."

O vendedor detestava rock nacional. Na verdade, ele detestava qualquer artista – brasileiro ou estrangeiro – surgido após a década de 1970 e me olhava assombrado, como se eu fosse um alienígena por gostar de Legião Urbana. Para ele, o mundo havia acabado em 1980, com o assassinato de John Lennon.

Emburrado, Doc Brown virou as costas para mim e foi pegar as fitas-cassetes. Comprei três.

Saí da loja e resolvi pegar um atalho para escapar da multidão e alcançar mais rápido o ponto de ônibus. Ao entrar em uma ruela estreita que nunca percorrera antes, encontrei, sob um edifício deteriorado pelo tempo e pelo descaso, um lugar que parecia ser uma sala de cinema. Na entrada, havia dois cartazes, um ao lado do outro, anunciando os filmes em exibição. O primeiro era de kung-fu; o segundo, pornográfico. Sobre o vão de vidro onde funcionava a bilheteria, um aviso em letras garrafais:

SÓ É PERMITIDA A ENTRADA DE MAIORES DE 18 ANOS

Curioso, decidi arriscar.

"Você já tem 18 anos, rapaz?", perguntou, com bafo de pinga, o velho de cabelos brancos que vendia os ingressos.

"Tenho", menti.

"Verdade?"

"Sim, verdade."

"Mostra o seu RG."

"Estou sem o RG aqui comigo."

O velho safado sorriu malicioso.

"Seguinte, rapaz, se você me der mais R$... deixo você entrar. Que tal?"

Paguei a propina cobrada pelo velho – o equivalente ao preço de uma dose de cachaça – e entrei. Ao passar por uma pesada e suja cortina vermelha, um breu profundo me cegou. Fiquei de pé, parado na entrada da sala, aguardando os meus olhos se acostumarem com a escuridão. Um odor nauseabundo de mofo misturado a mijo e porra invadiu minhas narinas. Era uma sala de cinema nojenta, pegajosa, abafada e, provavelmente, habitada por pulgas e baratas. Quando, enfim, consegui vislumbrar o lugar, andei com cuidado para não tropeçar e me sentei em uma das poltronas. Na tela, a pancadaria corria solta: um chinês (o mocinho da história) lutava contra outros 20 chineses (os capangas do vilão da história) e vencia o combate com belos e impossíveis golpes de kung-fu. O filme ainda demorou uns 30 minutos para terminar e, assim que acabou, outro começou a ser projetado logo em seguida. Era um pornô francês, com ambientação em uma espécie de aldeia feudal e protagonizado por um padre que, por baixo da batina, escondia um pau gigantesco. Fiquei chocado e, ao mesmo tempo, deliciado com o filme. Era a primeira vez que assistia à uma produção pornô e ver a religião sendo esculachada daquela maneira me divertiu bastante. Pensei na minha mãe e não consegui conter um riso de satisfação. Se ela assistisse àquele filme, vendo um padre comer várias mulheres do lugarejo, acho que cairia dura, morta de escândalo.

Em determinado momento do filme, um homem se sentou ao meu lado. Olhei para ele de soslaio. Era um senhor com idade entre 40 e 50 anos. Vestia paletó e gravata. Parecia um empresário, advogado ou algo assim. Fiquei incomodado com essa proximidade e me preparava para mudar de poltrona quando ele pousou a mão sobre a minha perna. Estremeci. "O que faço agora?", pensei, alarmado. Cruzei os braços sobre o peito, em postura defensiva, e, imobilizado pela dúvida, permaneci na mesma poltrona, com o coração na boca, a respiração ofegante. Sem pedir permissão, o homem deslizou sua mão pela minha perna em busca de algo mais quente e mais duro. Excitado pelo filme, atormentado pelo desejo, me abandonei à devassidão e, ali, naquela sala de cinema imunda, descobri que somos nada mais que bichos. Tudo aconteceu sem apresentações, sem uma única palavra, sem afeto.

Saciado, o homem limpou a boca e nem se despediu. Levantou apressado e desapareceu na escuridão. E eu me senti como Cazuza em "Balada de Um Vagabundo":

Vazio num terreno baldio.

Encontrar aquele antro de sacanagem mascarado de cinema foi a minha perdição. Se, antes, me debatia para não fraquejar e ir atrás de Flávio, agora teria que lutar contra o impulso de voltar àquele buraco sombrio e bodoso onde podia satisfazer meus desejos na clandestinidade, sem precisar me expor.

Saí do cinema fedendo a suore mofo.


Gente legal não gosta de Legião UrbanaOnde histórias criam vida. Descubra agora