Agora tanto faz

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Cheguei em casa. Abri a porta sem fazer barulho. Queria ir para o meu quarto sem ser visto por minha mãe. Dei azar. Diferentemente de dias anteriores, ela não estava na cozinha preparando o almoço. Estava na sala pegando algo em uma das gavetas da estante. Ao me flagrar na ponta dos pés – com o nariz inchado, um pequeno corte na testa, a camisa branca da escola suja, rasgada e manchada de sangue – minha mãe interrompeu o que fazia e me investigou de cima a baixo com seus grandes olhos de um azul pálido e inescrutável.

"O que aconteceu?", ela perguntou.

Pela entonação de sua voz, pelo modo seco e duro como minha mãe me inquiriu, logo notei que ela me recriminava antes mesmo de saber o que ocorrera. Para minha mãe, eu era o causador de todas as desgraças do mundo.

"Nada", respondi. E fui para o meu quarto.

Antes de eu surgir na vida da minha mãe, ela era uma mulher bonita, exuberante, independente. Trabalhou como aeromoça numa época em que as aeromoças ainda não eram chamadas de comissárias de bordo. Foi dentro de um avião que minha mãe conheceu meu pai, um representante comercial simpático, charmoso e com lábia irresistível. Meu pai conta que foi amor à primeira turbulência, em um voo tenso e inesquecível. Começaram a namorar, noivaram e, um ano depois, casaram-se. Quando soube que estava grávida, minha mãe não hesitou nem por um minuto. Abandonou a profissão que tanto amava para se dedicar inteira ao filho que carregava em seu ventre. Estava radiante e feliz, e jamais imaginou que eu seria o responsável por acabar com aquela felicidade. Estraguei tudo. Acho que não queria vir ao mundo, não queria participar dessa palhaçada sem pé nem cabeça. E acho que foi essa minha teimosia em não querer nascer que acabou causando sérias e sangrentas complicações durante o meu parto.

Após me arrancar às pressas de dentro do ventre da minha mãe, o médico obstetra foi obrigado a extrair o seu útero, e a coisa que minha mãe mais desejava era parir outros filhos, ter uma grande e bonita família. Retalhada, esse desejo se tornou impossível, e a culpa por essa tragédia recaiu sobre mim. Durante longo tempo, até eu completar uns quatro meses, minha mãe me rejeitou. Nesse período, fiquei sob os cuidados de uma tia, irmã da minha mãe. De birra, quando minha mãe resolveu me pegar no colo pela primeira vez, comecei a chorar convulsivamente e, daquele momento em diante, não parei mais de chorar até completar dois ou três anos. Era modo de vingar a rejeição da minha mãe, modo de enlouquecê-la – e meu primeiro manifesto contra essa merda de mundo.

Sem poder gerar mais nenhuma criança e tendo que cuidar de um filho que ela era incapaz de amar, minha mãe murchou, e aquela mulher cheia de planos e entusiasmo deu lugar à beata rancorosa, taciturna e triste que buscava em Deus algum alento para sua atormentada existência. Minha mãe virou uma barata de igreja e me obrigava a ir à missa todo domingo de manhã. Meu pai também ia, embora não acreditasse no fanfarrão Todo Poderoso. Para meu pai, bastava ser honesto, respeitar o próximo, e estava bom assim. Ia à missa apenas para agradar minha mãe e dormia no decorrer do culto. Minha mãe o cutucava com o cotovelo. Ele acordava e, no minuto seguinte, voltava a cochilar. Eu, aos 11 anos, resolvi que nunca mais entraria numa igreja.

Minha mãe recusou a minha decisão, afirmando que eu lhe devia obediência. Eu, sem outra alternativa, com o objetivo de convencê-la de que estava determinado a sustentar a minha palavra, sequestrei a Bíblia que ela mantinha aberta sobre um pedestal na estante da sala e a picotei em mil e trezentos pedacinhos. Ao se deparar com seu livro sagrado todo estraçalhado pelo chão da casa, minha mãe teve um mal-estar súbito, o ar lhe faltou, suas pernas bambearam. Recuperada, ela me encarou com horror, como se eu fosse a personificação do mal, e desistiu de me doutrinar com religiosidades.


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