Teu corpo é o meu espelho

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O novo álbum da Legião Urbana foi lançado em julho de 1986, e eu e Isabela, ansiosos para ouvir canções inéditas do grupo, corremos à loja para comprá-lo. A capa, de coloração entre o bege e o amarelo, trazia apenas o nome da banda: LEGIÃO URBANA; e, abaixo, o nome do disco: DOIS. Mais minimalista, impossível. Na contracapa, os títulos das 12 faixas que compunham a obra.

Lado A:

1. Daniel na Cova dos Leões

2. Quase Sem Querer

3. Acrilic On Canvas

4. Eduardo e Mônica

5. Central do Brasil

6. Tempo Perdido

Lado B:

1. Metrópole

2. Plantas Embaixo do Aquário

3. Música Urbana 2

4. Andrea Doria

5. Fábrica

6. Índios

Após comprarmos o disco, em vez de irmos ouvi-lo na casa de Isabela, como costumávamos fazer sempre que tínhamos algum disco novo para escutar, fomos para a minha casa. É que a mãe de Isabela outra vez ingerira comprimidos demais e necessitava de silêncio e repouso para se recuperar.

"Acho que minha mãe não quer se matar, quer apenas chamar a atenção do meu pai", avaliava Isabela.

"Não sei se é o caso da sua mãe, Isa, mas tem muita gente por aí que vive se fazendo de coitada e jogando no ombro alheio a responsabilidade por seus fracassos."

"É, eu sei."

Chegamos à minha casa. Entramos. Ao nos ver, minha mãe não moveu um músculo sequer do rosto. Permaneceu com a mesma feição inexpressiva, impassível, inviolável. Minha mãe tem um controle impressionante de suas emoções. É impossível – até para mim, seu filho – adivinhar quando ela está alegre ou triste ou brava ou com fome ou com dor de cabeça ou cansada ou decepcionada ou com diarreia. Seu semblante parece não mudar jamais.

Isabela a cumprimentou. Minha mãe nada falou. Apena moveu a cabeça e voltou a trançar fios com a agulha do crochê. Como Isabela já sabia como minha mãe era (eu a alertara com antecedência), não se incomodava mais com as atitudes grosseiras dela.

Trancados no meu quarto, rodamos "Dois" na vitrola uma, duas, cinco, dez vezes, e fomos arrebatados pelo disco. Para nós, o novo álbum era ainda melhor do que o primeiro. Isabela pirou com a letra de "Tempo Perdido"; eu, com "Daniel na Cova dos Leões". Não comentei isso com Isabela, mas um verso dessa canção – Teu corpo é o meu espelho e em ti navego – fez eu perder o chão, o fôlego, o sossego. Depois que Isabela foi embora, ouvi a música sozinho, com atenção redobrada, para ter certeza de que entendera certo. Se esse verso significava o que pensava significar, então Renato, o vocalista da Legião Urbana, assim como eu, também gostava de meninos. De alguma forma, por meio de um estranho mecanismo de espelhamento, passei a sentir menos culpa por ser quem eu era, por desejar o que desejava. Se Renato era gay, eu também podia ser. Por que não?

Apoiado nessa ideia me enchi de coragem e resolvi revelar tudo para Isabela. Necessitava urgentemente desengasgar, verbalizar as minhas angustias. Estávamos no Morro do Farol e levara comigo, além de uma garrafa de vinho e cigarros, a letra de "Daniel na Cova dos Leões" manuscrita em uma folha de papel.

"Preciso te perguntar um coisa, Isa."

"O que é?"

"Você entendeu essa música?", perguntei, mostrando para ela a letra de "Daniel na Cova dos Leões".

Isabela pegou a folha de papel, sorriu e, sem hesitar, afirmou:

"Entendi: o Renato é gay."

Após uma breve pausa, acrescentou:

"E você também é."

Fiquei sem saber como reagir.

"É isso, Otávio?"

"Sim... quer dizer, não sei... pode ser só uma fase que logo passa...", disse, encabulado.

Isabela explicou como chegara à essa conclusão.

"Sabia que você tinha um segredo, Otávio. Só não sabia que segredo era esse. Aí, quando você elegeu essa música como sua preferida do disco novo da Legião, desconfiei que podia ser isso."

"Então você não tinha certeza?"

"Certeza não. Só desconfiei."

Apreensivo, fiz a pergunta mais importante:

"E você vai continuar sendo minha amiga agora que sabe que eu..." (não consegui terminar a frase).

"Claro, Otávio! Tenho um tio, irmão da minha mãe, que é gay. Lá em casa esse assunto sempre foi abordado com naturalidade."

Ao ouvir Isabela pronunciar a palavra "naturalidade", uma luz incandescente e libertadora se acendeu dentro de mim. Até aquele momento lidava com esse desejo como se fosse algo "antinatural": uma "doença" ou "maldição" ou "imoralidade" com a qual teria que aprender a conviver por toda minha vida. Mas e se esse desejo, ao contrário, fosse algo natural?

"É natural, Otávio. Meu tio uma vez me falou que a homossexualidade existe em diversas espécies de animais."

"Verdade?"

"Sim, verdade. Se meu tio não estivesse morando em Londres, apresentava você pra ele, e aí você poderia esclarecer um monte de coisas que devem te atormentar."

"Com certeza, Isa, com certeza..."

Mirei o mar revolto lá embaixo. Ao longe surfistas tentavam domá-lo com suas pranchas coloridas. De repente, fui invadido por uma canção do primeiro disco da Legião Urbana, uma canção que homenageava Isabela. Com a boca balbuciei a introdução de "Ainda é Cedo", a faixa 4 do lado A do disco. Isabela logo reconheceu a música. Eu me levantei. Ela também. E os dois, juntos – pulando e sorrindo e aprendendo a viver – começamos a cantá-la alto, bem alto, para que o mundo inteiro pudesse nos ouvir:

Uma menina me ensinou

Quase tudo que eu sei

Era quase escravidão

Mas ela me tratava como um rei

Ela também estava perdida

E por isso se agarrava a mim também

E eu me agarrava a ela

Porque eu não tinha mais ninguém

E eu dizia: ainda é cedo

cedo, cedo, cedo, cedo

E eu dizia ainda é cedo

Acho que nunca mais fomos tão jovens como naquela tarde.


Gente legal não gosta de Legião UrbanaOnde histórias criam vida. Descubra agora