Quem é o inimigo?

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Por Isabela, assenti em dar uma chance a Vicente, conhecê-lo melhor, e me surpreendi com ele. Fora do ambiente escolar, Vicente se mostrava menos arrogante e exibicionista. Estávamos em uma lanchonete e disse isso para ele pela primeira vez. Vicente, com expressão insolente, provocou:

"Do lado de dois fracassados como vocês, por que eu precisaria me exibir?"

E soltou sua costumeira gargalhada.

"Não se esqueça que você é ruivo", incitou Isabela.

"E daí?"

"Sei das maldades que dizem sobre você só porque você tem esses cabelos cor de ferrugem."

"E você acha que eu ligo para o que os outros falam de mim?"

Vicente, de fato, parecia não se importar. Ou simulava não se importar com o que os outros fuxicavam sobre ele. Dois ou três centímetros mais alto do que eu, devia ter 1,78m, Vicente tinha os olhos verdes cinzentos, as bochechas avermelhadas, os cabelos curtos e alinhados. Se vestia sempre com camisas polo, calças e bermudas de sarja. Era um típico mauricinho.

Àquela altura, os três já havíamos criado uma relação de amizade bastante sólida. Vicente, ao contrário do que eu imaginava, também não era muito sociável. Na verdade, ele era sociável apenas quando lhe convinha. Na escola, procurava manter boas relações com as pessoas que lhe interessavam: professores, funcionários da escola e alunos que podiam lhe servir para alguma coisa. Vicente tinha um talento nato para a dissimulação, o fingimento. Era o tipo de pessoa que eu achava mais seguro ter como amigo do que como inimigo.

"Não sei como vocês conseguem ouvir essa bosta!", atacou Vicente quando, durante a conversa, eu e Isabela lembramos do trecho de uma canção da Legião Urbana.

"Gente legal não gosta de Legião Urbana", disse Vicente.

Filho de pai economista e mãe dondoca, Vicente estudava piano desde os nove anos, estava com 14, e cresceu ouvindo música erudita e música popular brasileira.

"E você que só curte essas músicas de velho!", contra-atacou Isabela, com cara enfezada.

Toda vez que o papo descambava para o gosto musical de cada um, quebrávamos o pau. Isabela e eu nos posicionávamos de um lado do ringue; Vicente, do outro. Era um blábláblá interminável, que nunca resultava em entendimento, e, invariavelmente, encerrava-se com Isabela, vermelha de raiva, decretando que Vicente ouvisse o gênero musical que ele bem entendesse desde que respeitasse o que ela gostava de ouvir. Vicente, enfim, se calava. E eu sempre desconfiei que ele iniciava essas discussões só para irritar Isabela.

Da lanchonete, fomos para o cinema assistir à Férias do Barulho, uma comédia adolescente protagonizada por um ator, naquele tempo, ainda inexpressivo: Johnny Depp. O cinema estava lotado de meninos e meninas abobalhados. Entre eles, Patrick e seu bando.

Sentados duas fileiras atrás de onde estávamos, os quatro garotos começaram a atirar pipoca em nós. Isabela não se conteve. Levantou, virou-se para eles e os desafiou:

"Vocês são retardados ou o quê?!"

"Ô, esquisita, fica quieta aí que eu quero ver o filme!", atacou um dos integrantes do bando de Patrick.

O cinema inteiro começou a vaiar, xingar e pedir silêncio. Eu, no impulso, para defender Isabela, levantei, saí da sala e, alguns minutos depois, voltei com o segurança.

"São esses quatro", apontei.

O segurança, um homem forte, com uns dois metros de altura e voz grave e impositiva, ameaçou expulsar Patrick e seu bando da sala se eles continuassem importunando os outros. Ao ouvir a bronca, o público aplaudiu com estardalhaço, e um garoto, protegido pela escuridão, ainda fez troça:

"Vai, bundão, continua a bagunçar agora!"

Antes de eu voltar para a minha poltrona, fui fuzilado pelo olhar intimidador de Patrick. Se, antes, sem motivo nenhum, ele já me perseguia, dali para frente, após eu fazê-lo passar pelo vexame de ser repreendido na frente de tantas pessoas, sabia que a situação se complicaria. Naquele momento, lembrei do revólver que o meu pai guardava em uma caixa de sapatos escondida na parte de cima do seu guarda-roupa.

O filme acabou, as luzes do cinema se acenderam. Olhei para trás. Patrick e seu bando não estavam mais lá.

"E se esses babacas estiverem esperando vocês lá fora?", perguntou Vicente, preocupado.

"A gente enfrenta", sugeriu Isabela.

"Eu não tenho nada a ver com isso. Foram vocês que provocaram essa confusão."

Isabela bufou.

"Larga de ser covarde, Vicente!"

Como sabia que éramos mais fracos e iríamos levar uma surra daquelas caso Patrick e seu bando estivessem nos aguardando do lado de fora do cinema, combinei com Isabela e Vicente de corrermos cada um para uma direção diferente.

"Eles vão vir atrás de mim, Vicente. Pode ficar despreocupado."

"Você não devia ter chamado o segurança, Otávio!"

"É, não devia", pensei, já arrependido da minha atitude impulsiva. Fomos os últimos a sair da sala. Na rua, apreensivos, olhamos atentamente para todos os lados. Patrick e seu bando não nos esperavam e eu desconfiei dessa atitude: "O que será que esses caras estão tramando?". Tinha plena consciência que era só questão de tempo até eles me emboscarem e me espancarem como da outra vez. Só não entendia porque tinham resolvido adiar o revide.

Naquele fim de tarde, volteipara casa são e salvo.


Gente legal não gosta de Legião UrbanaOnde histórias criam vida. Descubra agora