Tamyla

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Tamyla, observava Mikaela cuidando do estranho que dizia ser Mácula, o dragão azul. Ela parecia preocupada, preocupada de mais com aquele pobre bastardo louco, tão ocupada que não teve tempo de usar sua magia para curar seu nariz. Teve que improvisar um curativo até que ela pudesse lhe dar atenção. Ia arrancar aquelas bolotas azuis, que ela chamava de olhos, de suas órbitas de peixe morto se acabasse ficando com o nariz torto. Ou ainda melhor, arrancaria aquelas sardas que davam impressão de sujeira, do rosto daquela ruivinha insossa.

Fora difícil sair do bar depois da confusão, principalmente com o estranho ainda vivo. Zet queria terminar o serviço, juntando a cabeça dele com o assoalho. Ela teve que intervir ainda com o nariz sangrando. Além disso teve que ameaçar os camponeses que, como de costume, encheram-se de coragem para linchar o inimigo depois que ele jazia derrotado.

Devia estar muito necessitada de companhia mesmo. Normalmente quebraria os dedos de qualquer pessoa que ousasse a encostar, mas não pôde deixar de notar que ele não a atacara diretamente. Poderia ter a ferido pelas costas e até a matado, seu ferimento fora fruto de falta de sorte. Mas tudo isso não mudava o fato de que ele parecia um monstro e ela não pretendia encostar nele mais.

Imaginou o que poderia ter acontecido a ela caso os dois estivessem sozinhos na cama quando ele se transformasse... mas não sabia se aquilo era verdade. Kant o pressionara de mais, sabia disso e talvez por causa disso tenham o tirado de lá, não sem antes prendê-lo em correntes de prata.

Uma coisa era certa, fosse o que fosse não era um mago. Não podia deixar de lamentar o fato de terem de matá-lo se fosse realmente uma besta. Ele, de certa forma, despertara o instinto materno dela, com aquelas covinhas nos cantos da boca, parecia uma criança inocente, mas ao mesmo tempo seu queixo duro dava-lhe um ar viril. E além disso havia aqueles olhos... ah, aqueles olhos.

Ela ouvira toda a conversa, apesar de estar distante, graças aos seus sentidos aguçados.

Depois de Kant dizer que ele era dinheiro fácil eles ficaram se encarando por um tempo que parecia que não terminaria.

Ele com olhos frios, fitou o guerreiro. Manteve-se em silêncio. Após quase um minuto sem que nenhum dos dois falasse Kant, não conseguiu mais sustentar o olhar e se obrigou a falar.

- Você deve estar se perguntando...

- Não estou perguntando nada. - Interrompeu-o bruscamente. - Ou será que agora você também lê mentes? - Seu olhar transbordava ameaça.

Kant pigarreou desconfortável. Não parecia esperar aquele tipo de postura. Deu de ombros, indubitavelmente imaginando tratar-se de uma coragem superficial, porém talvez perigosa, como a de um animal acuado lutando pela vida.

- Por que eu sou dinheiro fácil?

- Curioso? Imaginei que ficaria. - Disse recuperando o autocontrole. - Nós percebemos uma aura de magia em você. Os seus atos também estavam fora do padrão. Deduzo que você seja um mago foragido... - Disse olhando para ele, esperando alguma reação que não houve. Prosseguiu então. - Você tem ideia de quanto os caçadores pagam por um mago, um feiticeiro ou mesmo por um alquimista?

Mácula permaneceu em silêncio, seu semblante era como uma rocha.

"Esse cara devia jogar Zuta. É claro que Kant o pegou, mas ele parece que não vai admitir tão facilmente." - Pensou Tamyla.

- Você não nega, mas também não confessa. Não faz mal, mesmo que não seja um mago, o que faz sentido após ter quase morrido enfrentando simples lobos, você tem um bom corpo, sempre podemos vendê-lo como escravo se tudo o mais falhar... e é claro, caso seja um simples transmorfo poderemos vendê-lo a algum circo itinerante.

- Como imaginei você não faz a mínima ideia de quem eu seja.

- É mesmo? Vai dizer que é um príncipe foragido ou um bandido? De qualquer forma faremos dinheiro com você. - Era evidente o desconforto do guerreiro.

Após mais uma longa pausa o estranho falou.

- Chamo-me Mácula.

- Seu nome não faz diferença, bumbum. - Sorriu debochado. - O que você é o que me interessa.

- Sou um dragão azul. - Veio então o riso mais sinistro que todos os presentes já haviam presenciado. As covinhas nos cantos da boca pareciam ter se aprofundado ainda mais afundando verticalmente a pele da mesma forma e horizontalmente também, fazendo a boca como um todo se expandir alguns centímetros.

Kant, pareceu tremer um pouco mas logo se recompôs. Soltou um longo suspiro deixando os ombros caírem e parou com o teatro.

- Muito bem, por essa eu não esperava, ou melhor acho que não queria acreditar. - Coçou a cabeça. - Você é apenas um louco e não sei se podemos ganhar muito dinheiro com alguém assim. Uma pena você não ser corcunda ou anão, daria para vendê-lo como bobo, mas os tempos andam sombrios demais para alguém gastar moedas com alguém assim.

Mácula manteve-se em silêncio, encarando-o, já deixando de sorrir e reassumindo uma postura séria. Coube a Auriel explicar o que se passava, o guerreiro parecia ter perdido a vontade de conversar.

- Não existem mais dragões no continente. Esse a que se refere é realmente famoso. Mácula, o último dragão azul vivia no deserto de Lamár, em uma caverna que diziam ser inacessível já que o dragão entrava nela por túneis que sempre cobria de areia.

O estranho fechou seus olhos e sorriu como se lembrasse realmente daqueles tempos.

- O caso é que além de você ser muito menor que um dragão e não se parecer com um, nesses tempos estranhos até poderíamos acreditar que fosse um dragão, mas não Mácula, porque foi graças a morte dele que o atual imperador tomou o poder e vem expandindo o império para o sul.

Embora não tenha falado pela primeira vez sua expressão mudou. Era claro que queria saber mais.

- Foi há dez anos. - Reassumiu a história Kant. - Ele era apenas um cavaleiro andante com algumas lendas começando a se formar ao seu redor, então repentinamente decidiu se juntar ao exército real. Após menos de 1 ano já era um dos principais generais e graças a ele conseguimos uma vitória esmagadora sobre os invasores, com isso se tornou um herói para o povo e para o restante do exército.

- Não entendo a ligação disso comigo.

- Sim, acho que me alonguei de mais. Sempre gosto de uma boa história. - Sorriu Kant. - O caso é que esse dragão Mácula, sequestrou a princesa e a levou para sua toca, para fazer... bem seja lá o que os dragões esperam que uma princesa faça.

- Isso não faz sentido. Vocês são como insetos para nós. Não tenho nenhum interesse em humanos.

- Seja como for, o fato é que o futuro imperador foi ao covil do vilão, salvou a princesa e se casou com ela, trazendo como presente para o antigo rei a cabeça do monstro.

- Vocês humanos têm muita imaginação. Não tem como algo assim ter acontecido.

- Não importa como foi. Estou apenas te contando isso para que você saiba para quem iremos tentar te vender, já que estamos indo mesmo para a corte do imperador Jakyr.

A face de Mácula começou a se transformar. O ar parecia mais rarefeito.

- Como é o nome dele?

- Acalme-se rapaz. Não tente nada ao qual vá se arrepender depois.

- Jakyr...- Repetiu Mácula entre os dentes, com os cabelos já assumindo tons azulados.

Pouco depois iniciou-se a confusão.

Agora estavam na longa jornada até a capital. Estava claro que as meias verdades de Kant, não surtiram o efeito desejado. Ela ia ficar de olho nele. Queria ser a primeira a contar-lhe a verdade. Ainda tinha esperança que ele estivesse apenas fingindo loucura, mas se preciso fosse, que se danasse o plano, o deixaria fugir a noite para que não visse a cabeça do dragão que ele dizia ser ele pendurada no portão principal do palácio.


Mácula - Dragão AzulOnde histórias criam vida. Descubra agora