Jakyr

71 7 1
                                    



Acordou assustado, ensopado de suor.

Ficou alguns minutos sentado na cama segurando o rosto com a mão direita. Odiava ter pesadelos mas odiava ainda mais sonhos com fatos realmente ocorridos.

Lembrara-se da noite que dividira sua vida, que acabara com sua infância. Seu primeiro assassinato, de seu julgamento. Não entendia como podiam julgar uma criança. Pela Deusa, ele tinha apenas seis anos! Entendia ainda menos como podiam ter sido tão cruéis. Parou por um breve momento olhando a luva de couro de dragão presa com uma tira de prata, cravejada de joias, ao seu pulso esquerdo.

Balançou a cabeça negativamente e decidiu que não valia à pena ficar pensando sobre aquilo. Tinha problemas maiores a cuidar. Pôs-se de pé. A única peça de roupa que usava e nunca retirava era a luva em sua mão esquerda. Parou em frente ao largo e ornado espelho e aproximou um pouco mais o rosto. Contou quatro, cinco, seis fios brancos em seus longos cabelos. Estava envelhecendo mais cedo do que desejava.

Quando mais novo não entendia o motivo de as outras crianças não brincarem com ele. Hoje isso lhe era claro. Todos os moradores da cidade à exceção dele e da mãe eram meio elfos, o que explicava a reação do marido de sua mãe e colocava em xeque as explicações que ouvira dela.

Àquela altura da vida já não fazia muita diferença se era filho do moleiro ou da Deusa realmente. Decidira ser um herói e vinha-o sendo desde então, dedicando sua vida para o bem do reino, mesmo as vezes tendo de tomar medidas das quais não se orgulhava ou criando outros problemas como o de agora com a melhor das intenções.

Foi retirado de seus devaneios por uma batida receosa na porta.

- Entre. - Disse após vestir um robe pendurado em um balaústre de bronze ao lado do espelho.

- Imperador Jakyr. - Disse o cavaleiro caindo em um joelho.

- Já disse que dispenso as formalidades e que meu nome é William. Will se preferir. - Não achou necessário corrigir o Jakyr. Já há muito tempo vinham usando a alcunha pejorativa sem saber do que se tratava. Ele já havia mudado seu significado original com seus feitos.

- O senhor havia pedido que lhe avisasse pela manhã sobre as condições da rainha.

- E então?

- Parece que a febre diminuiu e ela talvez acorde ainda hoje.

- Bom. Muito bom. - Não conseguia deixar de pensar que a doença de sua esposa talvez fosse culpa sua. - Mais alguma novidade que necessite de minha atenção?

- Houve uma pequena rebelião no mercado central. Os insurgentes estão presos. Aguardamos suas ordens. Devemos executá-los para servir de exemplo?

- Claro que não! - Gritou. Respirou profundamente e controlando a voz terminou. - Não o faremos sem um julgamento justo. Todo homem merece uma oportunidade de defesa. Peça que tragam meu desejum. Ao meio-dia julgarei os revoltosos pessoalmente.

Quando o cavaleiro já de costas começava a fechar a porta do quarto Will lembrou de perguntar, embora já imaginasse a resposta.

- Qual foi o motivo da confusão.

- Eles reclamavam dos preços, de que estavam passando fome.

- Era apenas isso. Pode se retirar.

Caminhou para a bancada para olhar os jardins. Não teria coragem de executar aquelas pessoas. A culpa era toda dele. Nunca imaginou que poderia causar fome e desespero na população que desejava ajudar.

Vestiu uma calça e retirou o robe enquanto caminhava. Do alto da bancada podia ver boa parte da cidade. O mercado perto do porto, o portão principal da muralha e o mar onde há alguns anos iniciara a retomada do território perdido e expulsara os bárbaros.

Graças àquela ação o antigo rei concedera-lhe a mão da princesa. Ficava bem um herói como futuro rei. A inteligência daquele homem ainda o assombrava. Mesmo não tendo tino para as armas ou o planejamento de guerras sabia manipular como ninguém as pessoas, ele mesmo fora convencido a casar com a princesa com a justificativa que com o poder da coroa poderia melhorar mais a vida das pessoas do que como simples herói andarilho. Para ele, agora Will entendia, era ainda melhor, o salvador do reino como seu herdeiro garantiria a manutenção de sua prole no poder.

Não sabia em que ponto devia se arrepender, se deveria ter recusado o ataque ao dragão ou se devia ter apenas seguido o plano original.

O antigo rei havia simulado o rapto da princesa por Mácula, o dragão com os maiores tesouros conhecidos. E um daqueles tesouros era ainda mais especial que os outros. A fórmula alquímica suprema, o segredo de transformar chumbo em ouro.

Ele derrotou o dragão, vergonhosamente de maneira covarde, supostamente salvou a princesa e casou-se com ela, aumentando ainda mais as lendas ao seu redor. Após isso recrutaram todos os alquimistas e magos que puderam e passaram a gerar a maior riqueza já vista no continente. O rei desejava importar armas e fazer um novo castelo inteiro de ouro, mas morreu antes que pudesse realizar seu desejo.

Will se viu como rei e contrariando seus conselheiros decidiu distribuir a riqueza entre o povo. Os coletores de impostos passaram a ir às casas não para cobrar mas para doar riquezas. Nunca houve tanta felicidade no reino. No entanto se sobrou-lhe bondade faltou sabedoria.

Semana após semana os preços dos alimentos, dos serviços e manufaturas começaram a subir. E conforme o primeiro subia os demais também eram reajustados e os novos-ricos viam-se novamente pobres, em verdade ainda mais pobres que antes.

Ele decidiu agir baixando um decreto, obrigando que os preços fossem congelados, mas não adiantou, o povo começou a passar fome porque os produtos sumiam das prateleiras, passou a haver contrabando de pão e bebida. Mas aquilo ainda ia piorar.

Não demorou que aqueles alquimistas e magos que os haviam ajudado passassem a fabricar ouro, não apenas com chumbo mas com qualquer metal em benefício próprio.

Ele ficara desesperado. Não sabia o que fazer, conversou com os conselheiros e tomou algumas atitudes. A primeira foi capturar todos os magos e alquimistas, para evitar que continuassem fabricando ouro e para montar uma escola que seria a base de seu novo exército. A segunda foi decretar que só teria valor a moeda cunhada na capital e a terceira uma guerra expansionista.

Expandindo suas fronteiras ele resolvia dois problemas. Gastava boa parte da riqueza importando armas e cereais e desconcentrava a posse do metal da capital.

Os preços continuavam a subir mas já em menor velocidade. Os impostos vinham sendo pesados e em alguns lugares havia fome, mas não via melhor solução.

Tomou coragem, se vestiu e foi ao quarto de sua esposa.

Antes de dobrar o corredor Suzane o aguardava. Era sobre ela que recaíam todos os erros que ele cometia. O povo espalhava boatos como, o que se havia fome, doenças ou se o preço subia era culpa da feiticeira que havia enfeitiçado o bondoso suserano. Diziam ainda que fora ela quem envenenara a princesa para tomar o seu lugar como rainha. Ela era quase um estereótipo, mas nada daquilo era verdade.

A bela morena de idade indefinida, como toda bela e elegante mulher tem, era sua companheira desde antes da guerra, quando ele e seu grupo salvavam os camponeses de monstros não tão ameaçadores quanto àquela inflação.

Ela fez um pequeno relato das condições da rainha e entrou com ele no quarto.

O ar era rançoso. Havia gente demais ali. Um médico com uma máscara munida de um nariz excessivamente grande, além de um alquimista e duas aias, uma anã e outra de pele escura vinda do outro lado do mar.

Os olhos de sua esposa estavam abertos mas fitavam, vidrados o teto. Os lençóis eram brancos e limpos mas ele de canto de olho viu que haviam sido trocados há pouco, havia uma pilha de lençóis com marcas amareladas de pus em um dos cantos da cela.

Tentou falar com ela. Como não houve resposta puxou o lençol para descobrir seu braço e poder lhe segurar a mão.

Ao sentir o toque ela virou o pescoço e o fitou. Demorou poucos instantes para que ela o reconhecesse e arregalasse os olhos, com as pupilas dilatadas, a boca se abriu em um grito mudo de horror.

Ele soltou sua mão, virou de costas e saiu com os olhos úmidos. Entendeu que sua mulher o culpava por sua morte iminente.

Mácula - Dragão AzulOnde histórias criam vida. Descubra agora