Kant

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Mácula agachado com um joelho no chão segurava uma galinha pela asa olhando-a com excessivo interesse.

- Essa coisa ridícula serve para quê? - Girou ela com os dedos sem se importar com os gritos e bicadas que levava na mão. - Tem veneno, solta fogo ou qualquer coisa interessante?

- Ela coloca ovos e... bem, fica gostosa ensopada ou assada com maçãs. - Respondeu envergonhada, como sempre, Mykaela desesperada com os maus tratos ao animal.

Mácula olhou o animal novamente, já sem interesse, e a jogou para cima com toda a sua força.

- Vá! Não entendo como um animal com asas pode ficar se arrastando no chão. Fuja. Acho que ela só precisava de um empurrão. Vejam!

A galinha que tinha subido vários metros e começado a cair com gradativa velocidade agora batia as asas alucinadamente, planando e diminuindo a velocidade, mas não o suficiente. Quando estava a alguns centímetros do chão e de uma morte certa, um brilho azul a circulou, diminuindo sua velocidade e pousando-a delicadamente no chão.

- Mykaela! - Gritou Auriel, - Estamos saindo em missão. Não acredito que você gastou seus poderes para salvar uma galinha! Uma galinha!

Zet soltou sua estrondosa risada deixado a mostra seu dente de ouro, brilhante na espessa barba castanha.

- Não brigue com ela, Auriel. Mesmo que não fosse o tipo de coisa que ela faz ainda seria engraçado de ver a sua cara.

- Zet, você... - Se calou com os olhos sombrios. - Bumbum. Você queria saber o que mais essa criatura pode fazer não? Pois bem. - Dizendo isso em velocidade assombrosa alcançou a galinha que tentava fugir e com um golpe certeiro arrancou-lhe a cabeça.

Kant, segurou Zet que havia dado um passo à frente. Pedindo lhe calma com uma voz baixa porém severa.

Os olhos de Mácula brilhavam de interesse ao ver o animal sem cabeça continuar a correr. Mikaela chorando abraçou o ex-dragão e Kant teve que agir rapidamente. Segurou Zet ainda mais forte enquanto com um simples olhar dava a ordem para Auriel acalmar Tamyla, que àquele ponto já segurava o arco e tinha o rosto vermelho em sinal de fúria.

Mácula piorou ainda mais a situação ao perceber que a garota que lhe amarrava o pescoço tinha lágrimas escorrendo.

- O que é isso saindo de seus olhos? - Disse passando o dedo em uma das lágrimas e levando-a a boca. - É salgado.

Kant se preparou para o grito e que Zet deveria soltar mas para sua surpresa o anão apenas suspirou baixando os ombros. Tamyla não agiu tão bem, mesmo com a mão de Auriel tapando-lhe a boca enquanto se engalfinhavam pelo chão, era possível ouvir as palavras de baixo calão com que se dirigia à clérica. Essa por sua vez ao perceber o que acontecia ou devido à vergonha causada pelo gesto de Mácula soltou o abraço e deu dois passos vacilantes para trás. O guerreiro como líder do grupo decidiu que deveria usar suas habilidades de gestão de conflito.

- Muito bem, chega disso tudo! - Com a voz mais forte que conseguiu exprimir. - Estamos em missão e vamos sair logo. Não há motivo para perdermos mais tempo aqui. Caro fazendeiro. Inclua essa galinha como parte de nosso preço e mande sua mulher prepará-la para o jantar. Voltaremos em breve e cearemos com vocês. Sigam-me.

Girou nos calcanhares trêmulo como sempre ficava após dar uma ordem. Sempre se perguntava como agiria se um deles resolvesse não obedecê-lo. Sentia uma gota de suor escorrer por seu pescoço, fruto do auto-controle a que se submetia ao resistir ao desejo de olhar para trás. Sua preocupação era infundada, os demais logo pararam de discutir e o seguiram.

Haviam se passado cinco dias desde que Mácula se juntara ao grupo. Decidiram cortar caminho pelas bordas do reino de Label, gerido por Jakyr, visando a ponte sobre o rio Sukibat, o mais caudaloso da região, o que evitaria quase uma semana de viagem em uma região pantanosa e quase sem serviços.

Chegaram a pequena aldeia onde um dos fazendeiros pediu ajuda sobre o sumiço de algumas galinhas. Kant quase rira de sua proposta, demasiada simplória para uma equipe de mercenários experientes como eles, mas a recompensa de mil moedas de ouro o fez mudar de ideia. Não tinha a mais vaga ideia de como um simples camponês conseguira tão vultuosa soma e nem porque gastaria tanto com galinhas, afinal poderia compras dezenas delas com esse valor, mas decidiu aceitar logo antes que a sanidade voltasse ao aldeão.

Durante a viagem eles vinham tentando dar algum treinamento ao seu novo integrante, mas não vinham logrando êxito no intuito. Ele não levava o menor jeito com a espada, não parecia ter o pulso firme, soltando-a ao aparar qualquer golpe por mais fraco fosse. O mesmo ocorria com o arco, chegara até mesmo a ferir o rosto com a corda. Era um pouco melhor com os punhais, mas insistia em usá-los como se fossem garras, as vezes esquecendo de segurá-los com firmeza e atacando com a mão aberta.

Sempre que tentava explicar ele dizia que era um dragão e nunca precisara de armas, que achava covarde aquilo. Kant lembrara então da origem do apelido bumbum, de como ele pretendia atacar os lobos que o cercaram, com golpes de um ausente rabo. Pensou se não seria uma boa ideia recriar o tal rabo introduzindo uma lança ali...

Foi retirado de seus pensamentos por Auriel.

- Terminei o reconhecimento nas redondezas.

- E então? Do que se trata? Bandidos? Uma raposa?

- Um pouco dos dois.

- Como assim?

- Os passos são maiores do que o de um ser humano normal. Quem quer que seja deve ter entre dois a dois metros e meio.

- Uma pessoa bem grande para passar sorrateiramente pela fazenda.

- Não tenho certeza se é uma pessoa. O formato dos passos...

- Sim.

- São de raposa.

- Hum....Talvez botas nesse formato para disfarçar?

- Pode ser. Mas eu acho que estão nos escondendo algo. O valor da recompensa foi alto de mais e além disso achei alguns pelos avermelhados no caminho e no galinheiro.

- De raposa?

- Ao que me parece sim, mas deixei com Mikaela para ela examinar antes de vir falar com você.

- E então?

A própria Mikaela respondeu.

- Licantropo.

Mácula - Dragão AzulOnde histórias criam vida. Descubra agora