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O caminhão já estava pronto para partirmos. Surpreendentemente, não haviam muitas caixas, nem muitos pertences. Comentei isso com minha mãe, mas ela só falou que sempre fora assim e eu nunca percebi. Óbvio que ela havia vendido algumas coisas. Talvez muitas.

A casa parecia outra sem os móveis. Me senti num lugar diferente do que nasci e cresci quando passei pelos corredores, portas, desci a escada. Mas eu sabia que era o mesmo lugar de sempre, e sabia que sentiria uma falta incompreensível daqui. Passei a mão pelas paredes enquanto andava, até abracei a bancada da cozinha, pois mesmo ainda não tendo ido, já sentia saudade.

Provavelmente nunca mais estaria aqui de novo.

Minha mãe buzinou pela terceira vez me chamando, e logo fui correndo para fora, indo em direção da parte de trás do carro para sentar-me junto a Theo, não sem antes parar para dar uma última olhada como se fosse uma despedida do meu lar, que como muitas coisas, já não era mais meu.


Agora eu compreendia o fato de terem poucas caixas. A família de meu pai, diferente da de minha mãe, era muito melhor em questões financeiras. Foi uma salvação para a família de Verônica a filha ter se casado com um Santori; ou seja, a casa de minha vó era minúscula. Nem casa era; um apartamento de dois cômodos em um prédio antigo longe da cidade.

Fomos recebidos alegremente pela viúva de já cabelos brancos com abraços e beijos. Na sala de TV, havia uma cama encostada na parede, logo abaixo da única janela do lugar. Aos pés da cama, ficava o banheiro e ao lado, a cozinha. E é isso. No meio da sala seriam postos nossos colchões e as caixas ficariam amontoadas no canto que sobrasse. Se sobrasse.

Infelizmente, os móveis vendidos por minha mãe eram extremamente velhos e sem qualidade. Ou seja, tinha arrecadado pouco dinheiro. Combinamos que no dia seguinte, eu sairia para procurar um trabalho. Combinamos que eu voltaria viva.

Theo estava deitado no colchão entre eu e minha mãe. Claro que minha vó estava na cama. Ela roncava profundamente, assim como minha mãe. Coisa de família.

Theo virou-se para mim. O garotinho não conseguia dormir, assim como eu. O suor brotava de sua testa, mas suas mãos tremiam. Abracei-o, assim como meu pai fazia comigo. Minha mãe não fazia demonstrações de amor, e claro, havia herdado isso da mãe dela.

Beijei sua testa, repetindo mais uma vez que tudo ficaria bem. Mas, ultimamente, não faço ideia das coisas que falo.


Suspirei fundo e saí pela rua. Andei como se estivesse indo para o último dia de aula, felicidade estampada no rosto, porém, no fundo, uma tristeza. Caminhei normalmente, indo de estabelecimento a estabelecimento, e com isso quero dizer de uma mercearia a um bangalô. Viver no interior não seria muito fácil.

Andei, sofri, xinguei. O sol escaldante queimava meu rosto e deduzi que já fosse meio dia. Quando achei que não tinha mais o que andar, andei mais um pouco, e vi um alto prédio antigo atrás das árvores. Logo entrei, uma sensação de alívio enorme ao sentir o clima fresco lá de dentro. Não havia ninguém a minha vista, somente a bibliotecária atrás do balcão. Fui logo falar com a mulher, que tinha por volta dos 50 anos, dizendo todo aquele blá blá blá de emprego e no final, fui contratada!
Minha função não ia ser lá essas coisas e meu salário também não, por causa dessa maldita crise. Mas era melhor do que nada.

A bibliotecária, que se apresentou como Sra Galvão, me guiou até os fundos da biblioteca, descendo dois lances de escadas e chegando num tipo de depósito, onde haviam várias caixas e vários livros. Ela murmurou um "divirta-se" para mim, mas pelo tom de sua voz percebi que coisa boa não estava por vir.

Me aprofundei naquelas torres de papeis encapados, e pensei que não seria tão ruim, pois afinal, eu gostava de ler.
Apesar que gostar de ler e trabalhar colocando milhares de livros em caixas e estantes não são a mesma coisa.

E lá no meio, encontrei uma menina tão branca que parecia estar com falta de oxigenação. Ela se destacava por seus cabelos vermelhos no meio da sala. Não conheço mas já considero amigona.

Ruivos são incríveis!

Ela levantou o rosto de uma caixa e me encarou por uns instantes, logo saindo dali e vindo em minha direção.

- Então, é você a novata?

- É, acho que sim...

- Deus é bom. Meu nome é Belini - disse ela, estendendo a mão, que logo apertei - Somália Belini. Mas, por favor, me chame de Malia.

- Mália? - perguntei

- Não. Malía. Mas sem o acento.

Assenti uma vez com a cabeça, refletindo no nome não muito normal que ela tinha, mas Malia já me tirou dos pensamentos.

- Vamos garota! Tá na hora de criar calos nessas mãos! Work, bitch!

- Música da Britney Spears! - disse depois de rir - Como que vou criar calos encaixotando livros?

- Acredite em mim amor, cria.

Rapidamente desfiz o sorriso, lembrando-me rapidamente de Mat. Mas agora não era hora de sentir saudade. Me aproximei de Malia, ajudando-a a esvaziar a caixa, e criando um sorriso novamente quando ela começou a cantar a música e eu a acompanhei.

Durante o trabalho, eu e Malia fazíamos pequenas pausas de no máximo 10 minutos para sossegarmos um pouco. Entre essas pausas, aproveitei para ligar para minha mãe, dizendo que consegui um trabalho, o que a fez dar um gritinho de alegria, e que não sabia exatamente que horas chegaria em casa, mas provavelmente seria a noite. Agora, já escurecia.

Eu e Malia nos despedimos apressadamente e saímos, cada uma para um lado, desesperadas para chegar em casa. Assim que fui me afastando às pressas do prédio entre as árvores, meu desespero logo diminuiu em lembrar que minha casa ficava bem longe. Diminui o passo. Tinha uma longa jornada em minha frente.

O único som era o dos meus sapatos chocando-se contra o asfalto. Estava exausta. Sentia que a qualquer momento poderia desabar e dormir no chão mesmo.

Fui andando na rua deserta até que avistei uma pessoa, que pelos ombros largos e a cabeça raspada apostei que fosse um homem. Mesmo de longe, podia ver que era musculoso.

Ele vinha andando na direção oposta, ou seja, de frente para mim. Meu estômago revirou mas logo afastei qualquer pensamento ruim porque, afinal, as pessoas passam pela rua, ele podia ser qualquer um, assim como eu.

Estava convencida disso quando passei debaixo de um poste de luz, no ponto em que nós cruzaríamos, e por um segundo, o estranho me encarou, deu um sorriso com dois dentes podres e avançou para cima de mim, prendendo meus pulsos com uma mão, tapando minha boca com a outra e jogando-me contra o chão.


















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