Capítulo 4

1.9K 119 11
                                    


– Vamos almoçar? – perguntou Váleria, nutricionista chefe do Hospital do Câncer e minha atual chefe.

– Pode ir, não saio daqui enquanto não terminar esse cardápio de natal, está no prazo final e os colaboradores vão às compras na próxima segunda-feira. – respondi.

– Ok, mas cuidado. Fico lisonjeada em ter funcionários dedicados, mas não desnutridos e você quase nunca almoça decentemente, amanhã nada de lanches em sua mesa, vai almoçar comigo no refeitório de forma adulta. – ela sorriu.

– Palavra de escoteiro. – sorri de volta.

Hoje fazia nove meses que eu havia lido a carta que meu pai deixou, nove meses que eu havia descoberto o quanto ele esperava de mim e o quanto eu o havia decepcionado com meu jeito irresponsável e leviano de viver. Nove meses que eu havia sentido dor da verdade, mas o mais importante era que fazia nove meses que eu havia decidido fazer algo bom em memória do desejo dele e algo bom por mim mesma. Eu não sabia ao certo o que eu iria fazer e nem como faria, muito menos se seria algo grandioso, porém, eu estava disposta a me empenhar nesse projeto, eu estava disposta a não ter medo de olhar para dentro de mim e descobrir o que eu encontraria.

Após ler a carta naquela noite, eu não chorei, não pude, simplesmente senti vergonha, muita vergonha. Nada foi pior do que ler em todas aquelas letras o quanto ele esperava de mim e isso só me fazia ter certeza do quanto ele não estava satisfeito com o que eu estava me tornando. Cada atitude minha me afastava cada vez mais do que ele tinha planejado para mim, eu estava longe de ser a mulher que meu pai havia me criado para ser. Pior do que não estar satisfeito, era estar magoado e sentir- se impotente diante da doença que o consumia. Ele queria que eu fizesse algo grandioso da minha vida e eu não tinha certeza se seria capaz, mas enquanto eu tivesse vida, eu tentaria. Deve ter sido horrível pra ele deixar essa vida sabendo que sua filha estava se tornando tudo o que ele desprezou a vida inteira, e isso eu nunca poderei mudar e nem sei se ele um dia vai saber que eu tentei, mas não desistir já aliviava minha alma e isso me ajudava ao menos a voltar a dormir. 

Voltar para o sítio foi a decisão mais difícil que já tomei, por mais que fosse um desejo do meu pai que eu e minha mãe tivéssemos uma relação de mãe e filha, não estava sendo fácil, já que ela, com razão, me culpava por ele não ter tido paz nos seus últimos dias. Eu estava tentando compensá-la pela má filha que havia sido, fazendo o jantar nos finais de semana, ajudando com a horta e com as flores. Eu fazia o possível para que pudéssemos iniciar um diálogo, mas ela sempre me ouvia em silêncio e o máximo que conseguia arrancar dela era um aceno positivo ou negativo com a cabeça. Eu a entendia, não a julgava, pois ela havia perdido o companheiro, o homem da sua vida, sua metade e eu podia ver em seus olhos o quanto ela ainda sofria. Eu só esperava que um dia pudesse transpassar essa barreira de dor e sofrimento e mostrar que ela podia contar comigo, sua filha.

O hospital do Câncer da nossa cidade havia se tornado referência no estado, pois era voltado para pesquisa sobre o câncer infantil e por isso, motivo de orgulho de seus habitantes. Quando apareceu a chance de preencher uma vaga de nutricionista assistente, eu vi a oportunidade de começar a fazer algo de que meu pai ficasse orgulhoso. Não era voluntariado, afinal, eu precisava ter um salário para ajudar minha mãe com as despesas do sítio. O hospital atendia crianças de todo o país, garantindo uma assistência de altíssimo nível, e isso graças ao patrocínio privado de fazendeiros da região.

Algo Grandioso (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora