75- Os 1% Parte 3

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#995 se lembra. Ele tem uma ótima memória. Um doutor pode até dizer que ele tem memória fotográfica, mas ele só conhece um doutor. E esse doutor não está interessado na sua mente. #995 se lembra de todos os dias miseráveis deu sua vida.

Nesse dia em particular ele estava limpando os penicos na gruta. Existem vinte e dois penicos que pertencem a vinte e dois números diferentes. Cada um tem que ser esvaziado, esfregado, secado e devolvido. Quinze dos números precisam ter suas genitais limpas. Seis conseguem se limpar sozinhos. E um não tem genitais para serem limpos.

A gruta não é muito barulhenta. As vezes pode-se ouvir gritos, mas na maioria do tempo só o som da dor. #995 tem os ouvidos intactos, então pode ouvir tudo. Já pediu a Allen para ter seus ouvidos removidos, mas Allen recusou. Diz que não pode consertar o passado.

#995 entra no quarto de #1470. Ele está acamado, como a maioria dos novatos. Seu corpo está se curando para ser perfeito. Esta quase completamente coberto em ataduras, menos o rosto. Sempre teve o rosto perfeito. #995 lembra do primeiro dia de #1470 na gruta. Ele socava as paredes. Gritava e fazia ameaças. Antigamente era um homem alto, antes das correções de Allen, e era um tanto intimidador. Seu rosto, mesmo avermelhada de ódio e medo, era perfeita. Tinha simetria completa dos olhos e maçãs do rosto. Mesmo quando tentou se enforcar com os lençóis da cama, seu rosto ainda era uma obra prima. Deve ter sido difícil ter cortado as bochechas, nariz e lábios. Allen amava a perfeição.

Mas amava ainda mais sua profissão.

#995 arrastou o penico para debaixo da cama do #1470. Quando trocaram olhares, parecia que estava implorando. Quase se como dissesse em voz alta: "me mate". Mas claro que #995 jamais faria algo desse tipo. Na verdade, todos na gruta o olhavam daquele jeito. Já tinha se acostumado.

#995 devolveu mais penicos, mas se demorou em um dos últimos quartos. Era a #1459. Ela está longe da porta, virada para a parede. É uma das únicas que tem permissão para vestir roupas. Está usando um vestido branco colado, de enfermeira. Seu cabelo é longo e loiro, assim como os das outras. Está descalça, mas um par de saltos está perto dela. Não se move. #995 se move para um pouco mais perto. É sempre excitante ver a transformação.

Ninguém desconfiaria que a um ano atrás ela era uma reclusa que só abria a porta para as tele-entregas. #995 se lembra. Veio quieta, quase como se já tivesse desistido. Allen deve ter gostado disso. Ele gosta de fingir que seus números gostam do trabalho que ele faz. Gosta de fingir que faz a vida deles melhor.

#1459 deve ter sentido a presença dele pois se virou repentinamente para encará-lo. Seu rosto tinha um sorriso gravado. Sua maquiagem tinha sido tatuada em sua pele; pele a qual estava tão esticada que parecia doer quando virou sua cabeça. "Olá, senhor." Ela não parou de sorrir. "O doutor me chamou?"

#995 sacudiu a cabeça e olhou para o chão. #1959 deu uma risadinha. "Tudo bem, senhor. Estarei pronta quando ele chamar." Assim, voltou a encarar a parede. #995 se retirou rapidamente do quarto.

O último penico a ser entregue era o da #1101. Um cheiro terrível saia de seu quarto, muito pior do que qualquer outro. Ela está ali a mais tempo que os outros, exceto por o próprio #995. Todos os outros se transformaram ou morreram. Ou ambos.

Mas #1101 era teimosa. Deve ser por isso que Allen continuou a trabalhar nela todos esses anos. Já tinha passado por tantos cirurgias que era improvável que alguma pele em seu corpo fosse "original". Seus ossos tinham sido quebrados e restaurados tantas vezes que seu corpo estalava até com o mínimo movimento.

Mas através dos anos, ela continuou teimosa. Allen tinha costurado a boca dela diversas vezes pois se desse a ela a oportunidade de falar, ela o xingava o tempo topo. Ela nunca parou de lutar. Quando podia mover as pernas, o chutava. Se tivesse dentes, ela o mordia. Allen teve que finalmente remover todos os membros. Todos os dentes. Até as pálpebras. E ela era o único número que #995 viu que tinha tido os órgãos genitais removidos. Tudo que tinha era uma pele lisinha e alguns buracos.

#995 lembra do dia em que ela chegou. Ela não era que nem #1459. Foi retirada de sua família durante a noite. Devia ter dezesseis anos. Apenas alguns anos mais nova do que #995. Ela era uma menina gordinha de fazenda que cheirava a terra. Ela usava uma linda camisola azul que ia até os calcanhares. Ela acordou poucas horas depois que Allen a colocou na gruta. Não falou nada nos primeiros minutos, andando e olhando sua cela como se fosse escalá-la. E naquela noite, na primeira noite, mostrou o quão forte era.

"Ei, você," chamou. #995 estava no corredor, observando-a como fazia com todos os números novos. Ele olhou para os lados, confusos, mas finalmente entendeu que era com ele que ela estava falando.

"Você que me colocou aqui?" Seu tom era calmo. Concentrada. Estava claro que ela não ia socar as paredes ou chorar. Ela estava avaliando o novo ambiente.

#995 fez que não com a cabeça e olhou para outro lado.

#1101 franziu a testa. "Eles vão me fazer ficar que nem você?"

Ela devia estar se referindo a aparência de #995. Estava muito pior do que hoje em dia, sendo que as cicatrizes demoram anos para sarar. Ele foi o primeiro 1% de Allen. Dr. Allship trabalhou nele por 8 meses exclusivamente. Na época ele era um cirurgião novato, apenas começando sob as asas de seu pai. Cometeu diversos erros em #995. E #995 sentiu cada um daqueles erros.

Mas naquele momento ele não sabia se fazia que sim ou que não com a cabeça. Claro, não podia responder verbalmente, sendo que sua língua tinha sido removida. Então só se espremeu. Seu gancho espetou um pouco do tecido de cicatriz da barriga, mas ele tinha perdido todas as terminações nervosas lá e nem sentiu.

#1101 pressionou a mão contra as barras da porta de seu quarto. "Aproxime-se."

#995 estava exitante, mas cambaleou até a porta dela. Ela sorriu amistosamente. #995 não via um sorriso bondoso desde sua infância.

"Você tem um nome?"

#995 acenou com a cabeça. Se virou para mostrar a nuca. Lá, tatuado em tinta vermelha, haviam os números 9-9-5. Se virou para ela esperando ver um olhar de piedade ou de zombaria. Mas ao invés disso viu a mesma bondade de antes.

"Tenho um nome esquisito também. É Amaryllis. Nome de uma flor. Mas pra ser sincera, não sou muito parecida com uma flor. Pode me chamar de Mar." As duas mãos dela agora estavam contra as barras. "Você tem que me prometer que nunca vai esquecer disso. Você não pode esquecer meu nome. Aposto que vão querer me dar alguns números também, mas não são reais. Eu sou real. Você é real. Entendeu?"

#995 acenou com a cabeça lentamente. Então fez algo que sabia que poderia ser punido por Allen. Pressionou sua única mão intacta contra as barras e encostou nela. Pode sentir a pele, o suor de Amaryllis. Sentiu uma conexão pela primeira vez desde que Dr. Allen Allship II o arrancou dos braços de sua mãe morta e o arrastou até a gruta.

Ele nunca mais a tocou depois disso, e ela nunca mais falou com ele. #995 a viu todos os dias por quarenta e três anos, mas nenhum dos dois demonstrava lembrança daquela primeira noite. Mas todos os dias #1101 tinha ainda bondade em si. Mesmo depois de cada operação, ela ainda tinha bondade em seus olhos sem pálpebras.

Mas nesse dia o cheiro era absurdo. E infelizmente, era um cheiro que #995 conhecia muito bem.

"Ela esta morta, não é mesmo?" Allen estava atrás de #995. Ficaram parados juntos, olhando para o quarto. "#1101 finalmente morreu."

Allen está sorrindo. Está orgulhoso. "São ótimas noticias, #995. Tenho uma nova em folha para usar esse quarto."

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