88- Os 1% Capítulo bônus

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Allen II não acreditava em nostalgia. Para ele, era perda de tempo. Quando era puxado por suas memórias de infância, rapidamente se ocupava com outra coisa para evitar quaisquer emoções inúteis. Seu pai costumava dizer que emoções eram a raiz da preguiça. Allen II dava o seu melhor para não sentir nada, entretanto sua admiração por seu pai era inevitável.

Estava sentado em sua cadeira funcional da sala de estar, olhando o jornal em suas mãos. Havia fogo na lareira. Permitiu-se curtir as breves ondas de calor em suas extremidades antes de voltar a ler. Estava lendo os obituários, como sempre. Isso era o mais próximo de entretenimento que tinha. Não sorria quando via um rosto familiar naquela coluna de jornal, mas poderia. A mulher estava sorrindo na foto. Ele nunca havia testemunhado um sorriso dela.
Olga desceu as escadas com passos barulhentos. Ele não olhou para ela. Sabia como se parecia; o cabelo estaria em um coque. O rosto, que um dia fora bonito, estaria carrancudo. Pensou por uns instante no dia em que tinha a conhecido; no dia do casamento. Seu pai havia o encorajado a encontrar uma mulher alemã para se casar. "Algo jovem," disse, sua voz pesada pela origem Polonesa. "Jovem e Germânica. Algo que permita que continuemos nosso trabalho, que talvez até aprecie-o."

Olga tinha quinze anos quando se casaram. Allen II, trinta. Já tinha se formado em Medicina e sua prática estava florescendo. Seus pacientes apreciavam o fato dele ser efetivo e ágil. Ele, obviamente, desprezava todos seus pacientes normais. Apenas os 1% eram interessante ao seu ver.

Allen II pegou-se devaneando e sacudiu a cabeça violentamente. Olga se aproximou, hesitante. "Kann ich dich fragen-"

"Em inglês!" Allen II não levantou sua voz, mas falou de uma forma que quase fez Olga chorar.

"Sim, Inglês. Me desculpe." Ela já estava nos Estados Unidos por doze anos. Doze anos de intensa fiscalização do seu sotaque. Allen II tinha a ensinado inglês espancando-a. Mas mesmo com toda aquela brutalidade, as vezes se esquecia. "Quero comprar um presente para Allen. Posso usar o talão de cheques?"

Allen a zombou, sem tirar os olhos do jornal. "Você o mima demais. Se ele pretende seguir com o negócio da família, tem que se tornar um homem. Não precisa de presentes."

"Mas ele só tem nove anos!" Olga tinha devaneios diários sobre fugir com seu filho e dar um jeito de ir para a Alemanha e viver uma nova vida lá. Talvez eles adotassem uma menininha e criariam-na juntos.

"Quando eu tinha nove anos, já ajudava meu pai na sala de operações. Seu filho mal consegue segurar firme em uma faca enquanto corta a carne no jantar." Allen II finalmente levantou seus olhos e encontrou com os da esposa. Ela era linda. Qualquer outro homem se sentiria abençoado em ter filhos com ela. Mas tudo que ela criou fora um filhinho da mamãe e um ingrato. "Além do mais," disse com frieza, "Gastei o resto do nosso dinheiro com o novo consultório. Tem o espaço de armazenamento que eu preciso."

"Mas é Natal!" Olga queria muito ser uma boa mãe.

"O Natal é um feriado sem sentido que só serve para homens gordos e crianças preguiçosas." Jogou seu jornal no chão e se levantou.
Allen não permitia decorações na casa. Acreditava que eram excessivas e desnecessárias. Allen II não gostava de nada que considerava desnecessários como: sobremesas, música, filhas e conversa fiada. O Natal sempre era só mais um dia comum na casa dos Allship. Esse ano não seria diferente.

Allen II não tinha intensão de bater em sua mulher, mas mesmo assim ela se afastou. Era tão fraca, tão diferente das qualidades alemãs que seu pai tinha tido esperança que ele achasse em uma esposa.

Olga secou uma lágrima. "Posso pelo menos tirá-lo da gaiola agora?"

Os dois adultos olharam em direção da cozinha, onde Allen III estava sentando silenciosamente em uma gaiola de cachorro. Allen II tinha o posto lá de manhã porquê o menino tinha derramado leite no balcão. Honestamente, já tinha até se esquecido do garoto ali.


"Tudo bem, pode deixá-lo sair. Você sabe onde estão as chaves."Novamente, se sentou, olhando para a lareira.

"Mamãe, você pode me tirar daqui também?" Uma voz fininha soou da cozinha. Era James, o ingrato. Ele já estava em sua gaiola por um dia e meio. Fedia lá. Pelas primeira horas, ele chorava e se jogava contra as grades. Mas eventualmente se acalmou e se sentou o mais quieto que conseguiu, se balançando para frente e para trás. " Por favor, mamãe."

"Não me chame assim." Olga andou até Allen III, abriu a porta e o abraçou. Sussurrou algo doce em seu ouvido.

James colocou o rosto contra a portinha. "Mas mamãe, eu -"

"Por mim você pode apodrecer aí dentro." Olga pegou Allen III pela mão e o levou para longe da cozinha. Ela o levaria para o andar de cima e o daria seu banho da noite.

James olhou para os dois sem esperanças. Estava prestes a chorar quando seu pai veio até a cozinha e ficou de pé na sua frente. Não olhava nos olhos de seu pai. Tinha medo de seu pai. O homem quase sorriu, gostando do medo que seu filho mais novo sentia.

"Você quer sair?" perguntou calmamente.

"Sim, por favor." James tentou não tremer a voz.

"Sabe, quando eu tinha sua idade, já havia matado três homens. Meu pai me ensinou como. O primeiro matei com uma faca. O segundo com um machado. E o terceiro com um martelo. Meu pai me assistiu e me corrigiu quando errei." Allen II olhou para baixo. "Você quer matar um homem? Tenho um amarrado no meu consultório agora mesmo."

James não conseguia encontrar palavras para responder. Ao invés disso, começou a se mijar de medo. Tremia como uma folha enquanto uma poça de urina se formava em volta de seus pés.

"Foi o que eu pensei." Allen II deu as costas para a gaiola e foi para o outro aposento. Sentou de volta em sua cadeira, levou o jornal até perto do rosto, e leu sobre a mulher que tinha sequestrado três anos atrás. A família dela tinha finalmente aceitado que estava morta. Eles a colocaram no obituário com uma foto sorridente. Allen quase gargalhou sozinho. O que fariam se descobrissem que ela estava viva, recuperando-se de uma cirurgia no porão escuro que tinha acabado de criar de baixo de seu consultório? O investimento que fizera era necessário; precisava das celas logo abaixo de seu consultório normal para continuar o negócio de seu pai sem medo de ser descoberto.

A mulher sorridente era a primeira paciente em seu novo porão. Podia imaginá-la agora, deitada na cama de metal, se recuperando lentamente de seu transplante de face. Seu novo rosto era muito mais suave e branco, muito menos judaico. Logo ela estaria perfeita.

Suspirou profundamente, ignorando o choro de seu filho no outro aposento. Seu novo porão era o mais próximo de um presente de Natal que já havia ganhado. Relutantemente, se permitiu curtir aquela conquista.

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