Capítulo 2

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Antes de contar o desfecho dessa história, da minha história, é preciso contar o início. Meu nome é Annie Donacchi. Perdi meus pais ainda muito nova e fui criada por uma tia, que faleceu quando eu completei vinte anos. Meus pais, e depois minha tia, me deixaram uma herança muito generosa, mas eu sempre quis trabalhar. Perto de me tornar uma balzaquiana, fui nomeada diretora de um grande hospital onde eu já trabalhava, considerado uma referência em Oncologia Infantil. Quando escolhi me especializar em Oncologia, não imaginava que fosse amar tanto o meu trabalho, sem querer parecer fria. O câncer é uma doença horrível, sem a menor dúvida, mas estar perto daquelas crianças e poder fazer alguma coisa para livrá-las de todo o sofrimento pelo qual passam, é inacreditável. Sempre soube que seria médica, era o meu desejo desde menina. Acho que por isso sempre me dediquei inteiramente à minha profissão, mas sem deixar de lado minha vida social. Tenho muitos amigos e faço questão de arrumar tempo para me divertir. Tive alguns namorados, mas nenhum que me despertasse o desejo de me casar e formar uma família.

Não tive irmãos, nem irmãs. Quando meus pais faleceram, eu tinha apenas três anos. Minha tia, irmã da minha mãe, sempre me contou que eles queriam ter, pelo menos, mais dois filhos, mas a vida não quis assim. Tia Flor, como carinhosamente minha tia Florina era chamada por todos que a conheciam, era viúva e tinha um filho. Ela me contava que, assim que fui morar com eles, Inácio ficou muito enciumado e, constantemente, brigava comigo. Mas, com o tempo, nos tornamos irmãos. Com a morte de tia Flor, Inácio e eu nos aproximamos ainda mais. Eu era a sua única família, e ele, a minha. Dois anos depois de perder a mãe, Inácio se casou e teve um filho, que acabou se tornando meu afilhado. Tentava visitá-los pelo menos uma vez por semana, mas, quando não conseguia, matava a saudade por telefone mesmo. Eu sempre amei crianças e amava ainda mais o meu afilhado. Era a criança mais divertida que eu conhecia e, quando nos encontrávamos, eu me tornava criança também.

Quando entrei na faculdade de Medicina, conheci Lolita, Loli para os mais íntimos, e em poucos meses já estávamos dividindo um apartamento. Lá para o meio da faculdade, conhecemos Charlote. Ela havia acabado de brigar com o namorado, com quem vivia, e foi passar uns dias em nossa casa. Esses dias nunca terminaram e, depois de um ano, nós três nos mudamos para um apartamento maior. No começo, nos desentendíamos bastante, mas, com tempo, nos acostumamos com os defeitos e as manias de cada uma e passamos a viver em harmonia. Depois de todas estarem formadas e trabalhando, nos encontrávamos mais na rua do que em casa.

Meu trabalho era cansativo e desgastante, devido à grande carga emocional atrelada a ele. Diariamente, via famílias desmoronarem ao receber o diagnóstico de câncer, ou ainda pior, quando o doente falecia. Mas via também famílias se reerguerem, se reunirem através de uma notícia ruim. Dizem que na dor as pessoas acabam se unindo e isso é mesmo verdade. Mas o meu trabalho também me dava prazer. Não um prazer no sentido mais literal da palavra, não estava ligado à felicidade, mas sim à utilidade. Eu me sentia útil lá. Sentia que podia fazer a diferença na vida daquelas crianças e de suas famílias. Durante a minha especialização, sempre ouvia de um professor que eu deveria tomar cuidado para não me envolver com a história dos meus pacientes. Eu sempre fui muito sensível, me emocionava por qualquer motivo, inclusive nas aulas, durante os estudos de caso, por isso, ele vivia no meu pé com essa necessidade de afastamento. Quando fui trabalhar nesse hospital infantil, vi que seria impossível seguir os conselhos do meu professor, pois eram crianças que estavam ali, cada uma com a sua história, com a sua dor. E era comigo que elas dividiam alguns dos seus piores momentos. Não tinha como eu não me envolver. Eu chorava junto, sorria junto, ajudava a extravasar a raiva, a tristeza, o ódio. Sentia a dor da família quando a criança não resistia ao tratamento. E nada nem ninguém conseguiria mudar o meu jeito de ser médica.

ANNIE [Português]Onde histórias criam vida. Descubra agora