Dias atuais
Letícia tamborilava a ponta dos dedos no braço da cadeira, impaciente. Esperava há um tempo considerável na antessala da Diretoria. Não era a primeira vez que comparecia àquele local, nem a segunda ou terceira. Na verdade, após a sétima, parou de contar.
Não podia reclamar. Conseguia se divertir nesses momentos. Gostava do antes, quando arquitetava o plano minuciosamente. Amava o durante, quando as pessoas, sem desconfiar, participavam dele por espontânea vontade. Mas se deleitava mesmo com o depois, quando entrava nessa sala armada com argumentos tão irrefutáveis que fariam qualquer ateu olhar para Deus com simpatia.
Agora, porém, o tédio lhe acompanhava, talvez porque havia virado rotina. Precisava mudar de tática, ser mais ousada. Pensaria nisso mais tarde. Suspirou e afundou na cadeira até quase cair. Fechou os olhos meditando em qualquer imagem melhor que aquele lugar.
Uma praia paradisíaca apareceu em sua mente. Legal.
Uma casa confortável na montanha veio em seguida. Melhorou.
A sala sendo destruída por assustadoras e gigantescas labaredas de fogo, não deixando nada para trás. Perfeito.
Letícia sorriu. Escutou passos de alguém se aproximando, mas não se abalou. Mantinha-se ocupada demais com a imagem das chamas devastando a sala.
— Só quero ver se vai ficar sorrindo quando falar com a diretora.
Letícia sequer mexeu as pálpebras ao escutar a voz arrastada de Daniel, um garoto de duas séries anteriores à dela. Tinha certeza de que era ele, assim como previa que seus olhos irritantemente azuis a observavam. Tentou se lembrar se em algum momento eles haviam conversado. Não lhe veio nada à mente, além de diálogos soltos com outros garotos e garotas da sua turma — por sinal, amigos do irmão dele, Felipe.
Conhecia a fama de Daniel de se meter em algumas brigas, mas nunca muito sérias. Não chegava aos pés do que ela fazia. Atitude de nerdzinho, que precisava de atenção. Não era de se espantar que ele estivesse ali.
O que a deixou curiosa foi ele ter falado com ela.
— Não que seja da minha conta, mas acho que hoje não vai se dar bem — ele completou. — Embora tenha que admitir que foi bastante criativo o que fez.
Uma faísca pinicou em Letícia. Ela abriu os olhos e viu que ele se sentava no banco à frente do dela.
— E?
— E o quê?
— E o que você tem a ver com isso? — Os lábios de Letícia formaram uma fina linha.
— Como disse, nada. — Ele deu de ombros.
Letícia sorriu satisfeita e voltou a cerrar as pálpebras. Queria se concentrar na imagem da sala pegando fogo. Conseguia visualizar as labaredas nítidas em sua mente — algumas em vermelho intenso misturado com amarelo e outras em um tom alaranjado ameno. Estas últimas lembravam a cor de seu cabelo ruivo. Combino com esse cenário. Aproveitou e colocou Daniel no delírio. Ele sufocava com a fumaça e pedia ajuda, enquanto ela contemplava a cena, impassível.
Letícia não se importava se aquilo parecia doentio. O que a incomodava mais era sentir que Daniel a observava a alguns metros de distância.
Ela respirou fundo, se endireitando na cadeira.
— Qual o seu problema, Daniel?
— Muitos. Quer saber mesmo?
— Só os relacionados comigo.
— Nesse caso, nenhum. — Ele sorriu de leve.
Letícia revirou os olhos.
— Então-pare-de-me-olhar — falou devagar, para ver se ele conseguia entender o que ela queria.
— Só tentava acreditar que você... — Daniel não completou.
Letícia esperou que ele continuasse, em vão. Decidiu reparar melhor nele. O cabelo negro e encaracolado, um pouco acima da altura dos ombros, estava bagunçado — dentro do normal para os padrões de Daniel, que parecia ter um ninho na cabeça. Em seu rosto havia alguns machucados, mas nenhum deles aparentava ser muito recente, apenas hematomas naquela cor esverdeada de quando estão para desaparecer. Nenhum sangue escorria do nariz e empapava o uniforme. Este, aliás, parecia impecável, sem rasgo, nem mesmo um furinho.
— Veio aqui para ver se vou ser expulsa, é? Mexi com alguma namoradinha sua? — Esperou pela reação dele, que não passou de um franzir de sobrancelhas. — Não sei quem é, mas se quer saber, ela deve ter merecido — continuou falando em um tom irritadiço. — É tão idiota quanto você e seus amigos.
— Agora entendi porque falam que você é sociopata...
— Não sou sociopata! — Letícia se ofendeu.
— ...além de paranoica e egocêntrica. — Daniel mal dava chances para ela falar. — Não vim aqui para defender ninguém, nem ver você amarrar a corda no próprio pescoço. Pouco me importa com o que faz da sua vida — seus punhos fechados demonstravam o quanto se irritou —, desde que não influencie na minha ou na da minha família!
Letícia pensou estar em outra dimensão. Eles não falavam sobre a mesma coisa, falavam?
— Ok, não devo ser a primeira pessoa a te dizer — ela levantou as mãos como se defendesse —, mas acho que você tem problemas. Sérios. Quer passar na minha frente? Não me importo em esperar.
Daniel olhou para Letícia por longos minutos, e ela percebeu a expressão dele se suavizando aos poucos. O monstro parecia estar sendo domado. Garoto doido! Igual a todos os alunos nessa escola. Nenhuma novidade.
— Eu preciso falar com você — disse ele, com a voz mais controlada.
Letícia quase engasgou com a própria saliva.
— É uma piada, certo? Alguma brincadeira idiota ou...
— Não disse? Paranoica!
Letícia achou melhor tentar outra abordagem.
— Certo — bufou, irritada. — Não estou a fim de conversa.
— Pode ser, mas tenho algo para te contar — disse ele, sério. — E é importante.
— É por isso que está aqui?
Ele fez que sim com a cabeça. Letícia examinou o rosto do garoto enquanto investigava impressões em sua mente do que acabara de escutar. Não chegou à conclusão alguma, só a de que não desejava mais falar com Daniel — o que tentava fazer desde o início. Ainda mais porque, desde o incidente com o irmão dele, todos sabiam que ele agia meio desequilibrado. Não que ela se achasse tão normal assim, porém conseguia se manter em um nível sadio, como por exemplo, imaginar-se colocando fogo na escola, mas sem nunca ter feito nada de efetivo para que isso acontecesse. Por enquanto.
— Lamento, mas você tinha razão, sou sociopata — informou, tranquila.
Daniel abriu a boca para falar quando a secretária da diretora, Srta. Ana, surgiu de uma porta e comunicou:
— Ei, garota-problema, a Sra. Roseli pediu para entrar.
Ignorando o comentário de Ana e sem olhar para Daniel, Letícia se levantou e se dirigiu à sala da diretora, pronta para pôr seu plano em ação.
Ao menos, o debate com Daniel servira para aquecê-la.
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Picta Mundi
FantasyA vida da jovem Letícia virou de cabeça pra baixo após a morte de Raul, seu pai. Até mesmo o colégio onde estuda, o renomado Dippel - um reduto de jovens prodígios, perdeu a pouca graça que tinha. Mas as coisas começam a mudar quando descobre que o...