Letícia permanecia sob o efeito do choque. Por pouco não foram flagrados dentro da biblioteca com o diário G em mãos. Suas pernas não conseguiam ser tão ligeiras quanto seu cérebro ordenava, de modo que Felipe precisava guiá-la por entre as pessoas. Gradativamente, porém, a lucidez voltava. Ela sabia que era uma besteira no meio daquela desordem, mas tinha que demonstrar um pouco de indignação pelo beijo que ele lhe deu sem o seu consentimento.
— Que ideia foi aquela de me beijar?
— Deu certo, não deu?
— Devia ter me avisado!
Felipe a ignorou.
— Ei, estou falando com você!
— Agora não, Letícia.
— Mas...
— Quer sair viva daqui ou o quê?
Letícia fez uma careta, contrariada. Pararam próximos a alguns guardas que tentavam conter o fogo com baldes de água. Felipe retirou o fraque e rasgou duas tiras, afundando-as em um dos baldes. Estendeu um dos tecidos molhados para ela.
— Cubra o nariz e respire o quanto menos puder — orientou.
Felipe segurou novamente a mão de Letícia e continuou a guiá-la pela confusão que se instaurou no andar. Caminhavam encurvados, tentando respirar melhor. Pessoas corriam em meio à fumaça densa, esbarrando umas nas outras. Soldados tentavam conter as chamas, enquanto outros socorriam idosos e mulheres que não se sentiam bem. Tudo passava como um borrão na mente de Letícia.
Eles cruzaram a antessala caótica e chegaram a um dos corredores. Felipe, sempre na frente, não dava brecha para que ela falasse. Continuaram pelos corredores, até que chegaram à escada que subiram minutos antes. Nesse momento, Felipe travou e Letícia chocou-se com ele.
Mais adiante, havia quatro homens. Como a fumaça ali continuava espessa, Letícia não entendeu por que Felipe parou de andar.
— Vamos, Felipe.
Letícia percebeu que ele recuava se mantendo diante dela, de modo protetor. Ela não entendeu a postura, e isso a deixou mais curiosa. Então desviou de Felipe, conseguindo ficar na frente dele. Ele a trouxe para perto de si, mas ela se soltou. Forçou a vista. Observou as pessoas indo e vindo. Uma, em especial, chamou a atenção. Ela identificaria aquele rosto em qualquer lugar, a qualquer tempo. Esperou por tanto tempo para revê-lo que pensou em desistir algumas vezes. Ele não estava muito diferente, aparentava cansaço no passo devagar e rosto mais fino. Mas os olhos... O brilho ainda estava lá e quando fixou-os nos seus, Letícia percebeu que ele também a reconheceu.
De repente, a confusão ao redor não tinha mais importância. Letícia esqueceu a gritaria e a fumaça, e deixou as lembranças lhe invadirem. Em todas elas, seu pai estava presente. O primeiro tombo quando aprendera a andar de bicicleta, a medalha de prata na Feira de Ciências que eles comemoraram como se fosse de ouro, o modo como se lambuzavam ao tomar sorvete, a gargalhada dele enquanto assistiam a desenhos animados... Tantas recordações adormecidas que Letícia pensou que as tivesse perdido para sempre. Mas bastou um instante de aproximação para que tudo voltasse à tona e valesse a pena; desde a loucura que foi entrar em Picta Mundi até aquele exato momento. Não trocaria isso por nada no mundo. E faria tudo de novo, se fosse preciso.
Especialmente quando seu pai estava a poucos metros dela.
— Meu pai, Felipe! Meu pai!
Letícia começou a descer os primeiros degraus. Felipe a impediu, segurando-a pela cintura.
— Temos que sair daqui! — disse ele, alto, tentando superar o burburinho da confusão.
— Não entende? É meu pai! E nós já temos o diário!
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Picta Mundi
FantasiaA vida da jovem Letícia virou de cabeça pra baixo após a morte de Raul, seu pai. Até mesmo o colégio onde estuda, o renomado Dippel - um reduto de jovens prodígios, perdeu a pouca graça que tinha. Mas as coisas começam a mudar quando descobre que o...