Capítulo 9

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—  Preciso ver se meus pais chegaram — disse Daniel, olhando o relógio com ar de preocupação.

Felipe soltou um grunhido. Letícia percebeu uma mudança naquela postura. A determinação parecia dar lugar à tristeza. Por instantes, acreditou que ele, preso no quadro, realmente não via os pais há tempos. E percebeu que, se por alguma loucura fosse verdade, o quanto a família também devia estar sofrendo, sem saber de nada.

— O que vai dizer para eles quando te virem desse jeito? — Felipe apontou para o próprio rosto, como se este fosse um espelho mostrando as feridas cicatrizadas de Daniel.

— Não se preocupe. Meu rosto nem está muito machucado. Além disso, as coisas estão melhorando no colégio.

— Melhorando muito. —  Letícia se meteu no assunto, falando com Felipe. — Ainda mais se levar em consideração que dia sim, dia não ele aparece com a cara quebrada. Às vezes, acho que Daniel quer disputar comigo quem mais vai parar na sala da diretora.

— Nossos pais não foram no colégio resolver isso, Dani?

— Eles não sabem. Não contei para eles — Daniel confessou.

— Desculpa, mas eles são cegos? — Letícia por pouco não riu. — Ou eles pensam que você tropeça e cai de cara, beijando o asfalto quase todo dia?

— Eles não ligam muito. Satisfeita? — Daniel elevou o tom da voz, demonstrando irritação.

— Obrigado, Letícia — Felipe a recriminou.

— O que eu fiz? Como podia adivinhar? — Ela levantou as mãos, como se mostrasse que estava desarmada — Vocês sempre foram a família exemplo do Dippel! Para mim, contavam tudo um para o outro, até os segredos mais sórdidos.

Eles ignoraram a frase de Letícia.

— Dani... pai e mãe estão sofrendo, mas tenho certeza de que poderiam ajudar se contasse para eles que o pessoal pega no seu pé.

— Não sou você, Lipe! Eles não se importam! — Daniel reclamou. — Mas não é nada sério, ok?

—  Felipe, acho que não preciso dizer que está colocando um peso nos ombros do seu irmão, né? — Letícia comentou, ao perceber o impasse.

— Cale a boca! — os dois disseram juntos.

Letícia fez um gesto de selar os lábios com um zíper.

— Volto logo. — Daniel pôs um ponto final no papo e se afastou dos dois. — Por via das dúvidas, vou trancar a porta. Comportem-se.

— Ei! Não vou ficar aqui sozinha!

— Está com medo de quê, Letícia? Já que sou um delírio, não tem o que temer.

Ela olhou para Felipe e ele sorria de modo irônico, com os lábios parcialmente levantados. Idiota.

— Sem gritos — Daniel avisou. Andou até um canto, onde levantou um alçapão e desceu por uma escada. Ela escutou o barulho de ele trancando a passagem.

Letícia, observando o local, perguntou para o quadro - ou melhor, para Felipe:

— Estou no sótão da sua casa?

Ele fez que sim. Letícia considerou, de certa forma, engraçado conversar com a figura diminuta de Felipe. Lembrou-se do último ano que estudaram juntos. Todos idolatravam o geniosinho que ganhou as últimas seis Feiras de Ciências. Ela não podia negar que ele era tão inteligente quanto ela, mas também não podia deixar passar que ele parecia adorar se exibir.

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