Quando Letícia deixou a sala da diretora, o menino-maluquinho havia desaparecido de vista. Ótimo. Já bastava ter que encarar a derrota moral com a Sra. Roseli e a proposta feita por ela. Cruzou com a secretária no corredor, saiu do colégio e somente conseguiu respirar livremente quando passou pelo portão principal, com a raiva quase controlada. Quase.
A condição que a diretora impôs e ela aceitou: perder as lindas e proveitosas tardes de sábado com um psicólogo que gostava de consertar pessoas! Um expert renomado, cuja reputação ia além das fronteiras nacionais.
Por segundos, Letícia sentiu-se lisonjeada, pois devia ser mesmo um caso muito interessante. Mas custava a crer como conseguiu ser tão burra a ponto de acreditar que sua mãe, Ângela, não sabia de nada. Aquela ideia só podia ter partido dela. Quem mais ajudaria Roseli a elaborar o plano diabólico de fazê-la continuar no colégio e, de quebra, frequentar novamente um psicólogo?
— Anta! Se cair de quatro, pasto e corro o risco de nunca mais me levantar — murmurou irritada, enquanto pegava a alameda de volta para casa.
O caminho que fazia de segunda a sexta-feira do colégio para casa quase sempre era curto e agradável. Agora parecia eterno, como uma estrada de mão única para o inferno. As árvores com suas folhas espessas que faziam sombras arejadas tornaram-se claustrofóbicas demais, escurecendo o ambiente. A estrada não muito movimentada, onde o asfalto misturava-se com o um pouco de barro pegajoso dos canteiros, de repente tornou-se lamacenta e deserta. Tão agradável para Letícia, o cheiro de vegetação virgem sem cuidado algum, mesclado com o de plantas secas, hoje tinha odor de velório, combinado com cravos que nunca percebeu que existiam.
Não demorou muito para chegar em casa. Letícia morava a poucos metros do colégio, em um condomínio de casas — tão exclusivas e exageradas quanto o Dippel. Quando entrou pela sala, encontrou a mãe deitada no sofá, lendo mais uma daquelas revistas de decoração inúteis de que tanto gostava. Fez questão de sentar numa poltrona de frente e deixou a mochila cair com força na mesa de centro.
A falta de reação de Ângela fez Letícia ganir de raiva.
— Você está bem? — Sua mãe folheava a revista com calma.
— Não.
— Está com raiva de mim?
— Tanta que nem consigo medir, Ângela.
Ao enfatizar o nome da mãe, Letícia demonstrava o tamanho de sua ira.
— Vai gostar do Sr. Abílio — Ângela disse em tom ameno, quase convincente. — Ele se mostrou muito interessado em te ajudar.
— É, sou o seu mais novo objeto empírico — ironizou. — Ele deve estar entusiasmado.
Ângela deu um olhar de reprovação e deixou a revista de lado.
— Podia mostrar um pouco mais de gratidão.
— É? E por quê? Por me colocarem em um playground junto com outros ratinhos para esse cara ficar analisando meus possíveis desvios de conduta?
— A diretora está extrapolando no zelo por você. Ela pode se complicar com os donos do colégio se isso der errado.
— Isso? — Letícia escorregou na poltrona e encarou a mãe. — Fui reduzida à categoria de coisa?
— Letícia... — Ângela suspirou, naquele gesto de quem se demonstrava sempre cansada quando uma conversa entre elas ultrapassava mais do que um minuto. — Sabe que não é o que quero dizer.
— Pois não parece.
— Ora, pare de agir como criança! — Ângela disse firme. — Esse profissional indicado pelo colégio é muito sério e conceituado.
— Sabe como me sinto? Sem escolhas — argumentou, voltando-se para a mãe. — Vocês me fizeram aceitar uma condição que sabiam que eu não concordaria se não tivesse dado a minha palavra.
— Não te obrigamos a aceitar. Além disso, o que seria de você se não fosse esse psicólogo novo? A expulsão, provavelmente.
— A expulsão não me parece mais tão ruim, agora.
— Minha filha, preste atenção... — Ângela pôs sua mão sobre o braço de Letícia. — Dippel é um ótimo colégio. Não podia deixar que fosse expulsa. Apesar de reclamar, sei que gosta dos seus professores.
Letícia arqueou as sobrancelhas.
— Alguns deles — sua mãe se corrigiu. — Mas estuda lá desde pequena e tem ótimas notas.
— E nenhum amigo — Letícia murmurou. — Esse colégio está cheio de gente debiloide, mãe. E...
Mas Letícia não completou. Podia compreender o êxtase da sua mãe quando citava a instituição em que estudava. O renomado colégio Dippel, aquele que o círculo acadêmico venerava, e que mais parecia um minicastelo. Enfurnado no meio do mato, numa rua de difícil acesso, quase chegava ao ponto de visitantes de primeira viagem precisarem de mapa e bússola para achá-lo. A construção datava do século XVII, de algum barão-de-sabe-se-lá-das-quantas holandês, biólogo, que veio estudar a flora e fauna do país. Letícia não conhecia muito os detalhes, apesar de ter passado com nota máxima na matéria sobre a história do colégio — sim, essa matéria existia e tinha peso dois. Mas é claro que o espaço físico do colégio incomodava menos que sua estrutura curricular. Consideravam Dippel como um reduto de aspirantes a cientistas, uma escola para superdotados e gênios — que ela sabia estar à altura.
— Raul ficaria orgulhoso de você — Ângela completou.
O comentário sobre seu pai trouxe Letícia de volta e fez o restinho de sua paciência se dissipar.
— De que adianta o orgulho dele, se ele está morto?
— Não é a única a sentir falta dele — respondeu um pouco ríspida, aparentando cansaço com aquela conversa. — Mas eu estou aqui. O orgulho que sinto por você não conta?
Letícia não contestou o comentário. Não tinha certeza da resposta. O orgulho que sua mãe dizia sentir por ela era genuíno?
Raul nunca havia escondido a satisfação de vê-la estudando no mesmo colégio que ele mesmo frequentara. Essa sensação era contagiante, e ainda que Letícia não se sentisse completamente confortável, ela se esforçava para assistir às aulas e lidar com aquele monte de gente que detestava, tudo pelo prazer de vê-lo sorrir quando chegava em casa e lhe mostrava uma prova em que tirou nota máxima.
Mas seu pai não estava mais ali para incentivá-la. Ele, sim, sentia orgulho de Letícia. Ela percebeu que, para sua mãe, ter uma filha estudando no renomado Dippel aparentava ser mais uma coisa para se gabar no círculo de amigas que só faziam ler revistas inúteis. O que Ângela chamava de orgulho, Letícia chamava de traição.
— Papai não agiria pelas minhas costas, como você fez.
Ângela abriu a boca para falar, mas logo a fechou, se contendo. Balançou a cabeça em discordância, voltou a deitar no sofá e pegou a revista, continuando a leitura de onde parou.
Letícia tornou a irritar-se. Levantou-se e pegou a mochila com tanta força que achou que a mesa viria junto. Enquanto subia a escada, escutou sua mãe virar mais uma página da revista, como se deixasse para trás uma matéria que não importava mais ou a conversa que acabara de ter naquela sala.
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Picta Mundi
FantasíaA vida da jovem Letícia virou de cabeça pra baixo após a morte de Raul, seu pai. Até mesmo o colégio onde estuda, o renomado Dippel - um reduto de jovens prodígios, perdeu a pouca graça que tinha. Mas as coisas começam a mudar quando descobre que o...