Capítulo 21

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Magro de ruim!

Letícia se esforçou para ajeitar Felipe na cama. Com as mesmas cordas que ele usou nela, amarrou seus pulsos e tornozelos. Deu nós duplos, com toda força. Sabia que o efeito do sedativo logo terminaria e não queria correr o risco de tê-lo no seu encalço, atrapalhando. Não que tivesse alguma ilusão de que ele iria atrás dela, e sim, dos itens mágicos.

Quando terminou de prender Felipe, pegou a mochila e conferiu os objetos. Os diários, a caneta tinteiro, o envelope com as fotos do pai, ampolas, seringas e algumas frutas. Nem se lembrou de se alimentar, mas bastou sentir o cheiro adocicado de maçãs e a barriga roncou. Comeu duas maças e três bananas. Pensou em deixar as frutas que sobraram perto de Felipe, mas...

Ele que se vire!

Letícia colocou a mochila nas costas e analisou o quarto. A passagem devia estar em algum lugar por ali. Mexeu no piso com fundo falso onde Felipe escondeu a mochila, a cabeceira caindo aos pedaços, o lampião destroçado, a janela com uma bela vista para um celeiro no campo, sem sucesso.

Lembrou-se de quando acordou. Felipe a observava da porta.

Esse quadro devia ter outras camadas.

Caminhou até a porta e observou-a com atenção. Não entendia direito como a passagem entre quadros funcionava. Levantou o pé esquerdo e deu um passo largo, à frente. Esperou, mas nada aconteceu.

Ao sair do quarto, percebeu que era o único aposento naquele andar. À esquerda, havia uma escada, que ela desceu devagar. O som que vinha dos degraus dava a impressão de que desmanchariam. Ela chegou a uma sala simples, onde também parecia ser a cozinha. Mesa e cadeiras rústicas dividiam o espaço com um fogão a lenha.

Letícia revirou o espaço. Nem as brasas do forno a lenha escaparam, mas tudo o que conseguiu foi ficar com as mãos e rosto sujos de carvão.

— Droga!

Irritada e cansada, despencou em uma das cadeiras. Observou ao redor, procurando por qualquer fenda na estrutura da casa, mas não achou. A passagem não podia ser tão pequena e imperceptível. Quer dizer, rezava para que não fosse.

A verdade é que não sabia o que faria quando voltasse para o quadro do casarão. Mas era onde seu pai estava e por isso seu destino tinha que ser esse. Acreditava que quando chegasse a hora, saberia o que fazer.

— Ou não... — murmurou e pensou em Felipe lá em cima, desmaiado.

O pior é que esse calhorda poderia me ajudar! Mas tudo bem, não preciso dele. Sou inteligente, corajosa e...

Letícia não completou o pensamento. De nada adiantaria citar suas diversas qualidades, se não conseguisse sair daquele quadro.

O que faria? Deveria esperar que Felipe acordasse? Por mais safado que ele fosse (e as diversas variações desses xingamentos), ao menos ele sabia lidar com aquele mundo. Muito melhor do que ela, que entrou em Picta Mundi há poucas horas. Por outro lado, como confiaria nele? Como teria a garantia de que ele não a enganaria novamente? Ele traiu não só a sua confiança, mas também a de seu pai, e isso a irritava demais. Será que Raul confiava nele?

Se ele soubesse...

Letícia respirou fundo e se levantou para não enlouquecer. Precisava se pôr em movimento, então foi se lavar em um barril com água que havia visto (e inspecionado) ao lado do fogão. Teve que esfregar para que as cinzas saíssem das mãos; já o rosto, não tinha como conferir o estrago. Afundou-o na água gelada do barril e o massageou. Quando o ergueu, avistou pela janela o celeiro muito melhor conservado que a casa.

Não soube explicar como, mas sentiu como se a obra de seu avô falasse com ela em uma linguagem que não conseguia identificar, apenas sentir. Sorriu e saiu correndo em direção ao celeiro.

Usou todas as suas forças para abrir as pesadas portas de madeira. Lá dentro, algumas ferramentas e estábulos vazios.

O local não precisava de luz de lampião ou qualquer outro tipo. Não havia janelas, mas vãos por onde os raios de sol entravam, fazendo um efeito bonito, como se fosse um tabuleiro de xadrez no chão, de sombra e luz.

Letícia observou o desenho formado no chão e constatou que, no que seria a casa A8 em um tabuleiro, havia um enorme amarrado de feno. Ela se dirigiu até ele, e bastou tocar para sentir-se esquentar e o celeiro sumir.

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