Capítulo 20

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Letícia correu por entre os escombros e retirou os pedaços de madeira, concreto e o que mais via pela frente. Os dedos doloridos, as palmas das mãos cortadas, latejando, não paravam de trabalhar, mesmo com a dor infernal. O calor denso deixava suas roupas molhadas, o suor escorria pelo rosto, confundindo-se com as lágrimas. A cada entulho retirado, outros surgiam por baixo. A pilha parecia não ter fim.

Ela não desistiu. Tossindo muito, tentando respirar em meio à poeira que se sobrepunha à fumaça, continuou cavando. Sob aquela confusão, seu pai, encoberto. Podia senti-lo.

Removeu mais uma pedra com esforço. Debaixo dela, um rosto. Ela não o identificou. Não havia olhos, nem boca, nem nariz. Apenas uma pele imaculada, sem nenhum corte ou vestígio de sangue. Seria ele?

- Letícia...

A voz de Felipe chegou até ela como uma suave onda de som em sua mente. Ela se virou e se assustou por vê-lo sem face. Ele se aproximou e esticou o braço para tocá-la. Letícia recuou. Não queria segurar em sua mão. Não conseguiria sentir-se segura com uma pessoa sem um rosto completo.

Olhou para os lados, procurando por ajuda, mas percebeu que todos estavam como seu pai e Felipe. Até os guardas que se aproximavam ameaçadoramente, com as mãos levantadas, prontas para capturarem-na. Cada vez mais perto...

Ela escutou um grito agudo. Percebeu que era o seu e que acordava.

Letícia respirou com dificuldade.

Pesadelo, apenas um pesadelo. Estou em casa, na minha cama.

Ela não reconheceu o teto de madeira. O odor singelo de flores silvestres era diferente de onde morava.

Meu Deus... Morri?

Começou a sentir o pânico lhe invadindo. Tentou se levantar e não conseguiu. Sentiu os pés e mãos amarrados na cama. Isso lhe soava familiar. Lembrou-se. Picta Mundi, casarão, diário G, seu pai, Felipe, explosão e... Mais nada.

Analisou o local, tentando identificá-lo. Não parecia estar em algum quarto do Portal. Ali era mais rústico. Paredes e teto de madeiras, mas sem adornos. Uma cama e uma mesa de cabeceira longe dela, com um lampião apagado. A luz vinha de cima, uma lâmpada quase despencando no meio do aposento.

Levantou a cabeça para observar melhor o ambiente. Uma janela mais a frente, mas não possuía altura o suficiente para visualizar o que havia lá fora. Sentiu uma pontada intensa na cabeça, característica. Teve que fechar os olhos para se concentrar e não deixar que a dor a paralisasse.

O safado me sedou!

Pior que a cabeça latejando, porém, era o corpo exausto. Não se sentia bem fisicamente. Parecia que havia passado por uma máquina de moer. Mexeu o dedinho do pé e a dor reverberou pelas suas células.

Pelo pouco que conseguiu ver de si mesma, percebeu que possuía arranhões nas pernas e ataduras nos braços. Não parecia ter quebrado nenhum osso. Sorte. O impacto foi absurdo, e parte do local, desmoronou.

Meu pai...

Letícia repousou a cabeça na cama. Lembrou-se da pilha de entulhos que fez seu pai desaparecer debaixo dela. A garganta ardeu e um soluço se formou. As lágrimas escorreram e, com elas, seu ânimo se extinguiu. Lembrou-se do funeral do pai. Do caixão fechado por não existir um corpo. O seu desespero contrastando com a inexpressividade da mãe.

Não passaria por isso de novo.

Tinha que sair dali e ir atrás dele. Ele não podia estar morto. Letícia não chegou tão longe para acabar dessa forma. Ela iria até o fim, com Felipe ou não. Aliás, melhor seria ir sem ele. Não se esqueceu do modo como em alguns momentos ele agia estranho no casarão, além do fato de não querer que ela se aproximasse do seu pai. Não entendeu, porém, por que Felipe veio atrás dela. Por que enquanto ele pedia para ela voltar, seu pai implorava para ela ir com Felipe?

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