PRIMEIRO DEPUTADO
Não tenho a menor dúvida de que nada pode ser feito em relação aos chamados Denunciantes Invejosos. As denúncias versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, istoé, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do Estado.
As sentenças de condenação das vítimas dessas denúncias foram pronunciadas em conformidade com os princípios legais então vigentes. Esses princípios apresentam tamanhas diferenças em relação aos nossos, que podemos considerá-los como detestáveis. Mas isso não impede reconhecer que tais leis estavam vigentes no país.
Uma das principais diferenças entre o direito daquele período e o nosso está justamente no fato de que o nosso reconhece ao juiz uma liberdade de decisão muito menor no âmbito penal. Para nós, o respeito a essa regra (e às suas conseqüências) é muito mais importante do que o respeito à reforma introduzi da pelos Camisas-Púrpuras no direito de herança, segundo a qual para a redação de testamento são necessárias duas e não mais três testemunhas. Sem dúvida alguma, a norma que reconhecia ao juiz uma liberdade de decisão quase ilimitada no âmbito penal, nunca foi oficialmente promulgada. Foi aplicada, de forma tácita, na prática. Mas o mesmo vale em relação à regra contrária - por nós aceita - que restringe muito a discricionariedade dos magistrados.
A diferença entre nós e os Camisas-Púrpuras não está no fato de que eles formaram um governo sem leis. Isso constituiria, aliás, uma contradição nos termos. A diferença é de natureza ideológica. Ninguém acha os Camisas-Púrpuras mais repugnantes do que eu. Devemos, porém, reconhecer que a fundamental diferença entre a filosofia deles e a nossa está no fato de que nós permitimos e toleramos a expressão de pontos de vista divergentes, e eles tentaram impor a todos o próprio código monolítico.
Nosso sistema de governo considera que o direito é flexível, capaz de expressar e alcançar distintas finalidades. O ponto principal do nosso credo é que qualquer objetivo, devidamente incorporado nas leis ou nas decisões dos tribunais, deve ser provisoriamente aceito, mesmo por aqueles que o rejeitam categoricamente. A esses últimos deve ser dada aoportunidade de conseguir um reconhecimento legal de seus próprios objetivos, por meio de eleições ou no âmbito de um novo processo judicial.
Os Camisas-Púrpuras fizeram o contrário. Simplesmente descumpriram as leis com as quais não estavam de acordo, e nem mesmo se deram ao trabalho de revogá-las. Se tentarmos, agora, fazer uma triagem entre os atos desse regime, anulando determinados julgamentos, invalidando certas leis ou considerando como produto de abuso de poder algumas condenações, estaríamos fazendo exatamente aquilo que mais rejeitamos na atuação dos Camisas-Púrpuras.
Reconheço que a tarefa de realizar o programa que proponho será árdua e sofreremos fortes pressões da opinião pública. Deveremos, também, tomar as medidas cabíveis para evitar que as pessoas façam justiça com as próprias mãos. Acredito, no entanto,que o caminho que estou indicando é o único que permitirá fazer triunfar, a longo prazo, as concepções sobre direito e governo nas quais acreditamos.
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O Caso Dos Denunciantes Invejosos
Non-FictionO texto permite retornar a antiga polêmica sobre a validade e a moralidade do direito. O que acontece quando uma norma jurídica se revela injusta? O que deve fazer o juiz quando a aplicação das leis leva a resultados inaceitáveis? Para responder est...