Muitas pessoas não dão valor ao que têm. Não sei se porque estão tão alienadas que pensam que tragédias só acontecem com outros. Mas a verdade é que só se reconhece o real valor de algo quando o perde, não importa se é um lápis, uma meia, um celular ou a família.
E foi esse último o que eu perdi.
Hoje mesmo eu iria numa festa junto com eles, primeiro ano do filho de um amigo deles que, se não me engano, trabalhava no mesmo hospital, meus pais saíram para comprar um presente para o bebê e eu fiquei em casa me arrumando, era para eu estar pronta antes de eles pararem o carro na frente de casa e buzinarem. Fiquei esperando por um Peugeot prateado, recebi uma viatura de polícia.
Pelo que parece, houve uma troca de tiros entre duas gangues e meus pais foram mortos por balas perdidas. Eu sei que parece insensível da minha parte relatar os fatos assim, como se estivesse narrando uma partida de futebol, e eu admito que seja pelo menos um pouco. Eu estou em choque. Faz seis horas que soube da notícia e faz seis horas que meu cérebro travou. Assinto para as pessoas ao meu redor automaticamente, ouço-os falando comigo, mas não faço esforço algum para compreender as palavras.
E eu ainda não chorei.
Não sei como será minha vida daqui em diante. Teria sorte se encontrasse algum parente de quadragésimo grau morando em algum lugar do mundo, mas eu consegui me lembrar de algo pelo qual valeu a pena usar a massa cinzenta. O Senhor Francês, é como eu o chamava quando criança. Bem, de francês ele só tem o sobrenome: Beamont, mas eu lembro da sua figura alta e esguia, que sempre nos visitava e trazia algum presente para mim. Ele aprendeu rápido que eu dispensava bonecas e apreciava livros mais do que tudo na vida e foi por causa dele que eu li livros clássicos quando ainda era nova. O Conde de Monte Cristo foi o primeiro que ele me deu e o guardei com carinho todos os dias da minha vida até muito depois de ele parar de nos visitar tão frequentemente.
Honestamente, não sei explicar qual era a obsessão dos meus pais pela França, meu nome é Belle, que significa "bela" em francês, muito embora eu seja uma garota que possui diversas etnias dentro de si: de indígenas do interior da América a diversos países europeus que não a França e um homem com um sobrenome de lá é, ou pelo menos era, um grande amigo dos meus pais. Chamo os policiais e falo sobre o Senhor Francês, ou melhor, o Senhor Beamont, digo que era um grande amigo dos meus pais e como ele era um homem extremamente simpático e que, com certeza, me aceitaria em sua casa.
Não estou certa de que essa última parte seja inteiramente verdade, mas é o suficiente para contatarem o homem. Dão-me a opção de pedir a emancipação ou de ir para um orfanato, mas recuso. Sei que ainda não sou madura o suficiente para cuidar de mim mesma e que ficarei em um orfanato até completar dezoito anos, isso se eu não tiver a sorte de ser adotada. Dentre estas opções, a mais segura é ficar com o Senhor Beamont.
Já é madrugada, mas eu não consigo dormir, creio que mesmo se eu estivesse cansada, não conseguiria. Depois de me falarem que meus pais haviam morrido, tenho ficado sentada numa das celas, imóvel. Lembranças das risadas deles, dos nossos muitos momentos juntos, das nossas brincadeiras e das nossas raras brigas surgem na minha mente, formando um nó apertado na minha garganta que se torce a cada instante. Mesmo estando desse jeito há seis horas, não consigo chorar.
Teria sido diferente se eu estivesse junto? Será que se eu soubesse antes que a tragédia aconteceria eu teria aproveitado melhor cada milissegundo que eu tive perto deles? E se eles estivessem cinco segundos atrasados ou adiantados? Teriam ouvido os tiros? E se eu estivesse com eles? E se...
- Belle? - O policial que está responsável por mim segura meu ombro e me tira desse transe.
- Sim?
- Contatamos o homem que você mencionou e ele está disposto a ficar com sua guarda, pelo menos até você completar dezoito. Ele vem te pegar amanhã cedo.
- ... Obrigada. - Respondo com um fio de voz. Ele assente.
- Não tenho a menor ideia do que está sentindo, Belle, mas estamos aqui para te ajudar.
- Eu sei. - Respondo, sincera, mas Sean ainda não parece muito convencido.
- Tem algo que possamos fazer por você? - Penso em recusar e quase considero, mas eu preciso voltar para casa e pegar alguns pertences.
- Pode me levar para casa? - Dúvida relampeja em seus olhos crispados e apresso-me a esclarecer meu pedido antes de ele dar sua resposta. - Sei que está tarde, mas eu realmente preciso pegar algumas roupas e algumas coisas de... Valor.
- Tem certeza que quer voltar lá? - Suspiro, não tenho certeza, mas eu tenho medo do que pode acontecer se eu deixar para fazer isso mais tarde.
- Por favor.
Sean assente mais uma vez e me conduz a sua viatura. Um homem bom que beira seus trinta anos e que, pelo visto, também tem família. Imagino como deve ser trabalhar todos os dias com risco de levar um tiro, será que o esposo dele ficaria no mesmo estado que eu? Ou talvez ele estaria deixando lágrimas rolarem soltas? Será que os dois já tiveram a oportunidade de adotar uma criança ou, quem sabe, contratar uma barriga de aluguel? Deve ser triste viver sob essas incertezas. Eu nunca tive dúvidas de que entre meus pais e eu nunca ocorreria algo de ruim, éramos pacatos e, mesmo assim, olhe o que aconteceu.
A viagem até minha casa foi silenciosa e, para mim, extremamente dolorida. Giro as chaves nos meus dedos escutando o tilinar de metal contra metal que meu pai fazia para me irritar. Esse som nunca me pareceu tão acolhedor quanto agora. Depois de se estar tão no fundo do poço, até algo que irrita se torna acolhedor, algo estúpido se torna consolo e é isto o que busco quando destranco a porta da frente.
Recuso-me a olhar o resto da casa que não o meu quarto, dói demais, está tudo tão impregnado em mim que eu fico esperando que eles passem pela porta e me digam que é tudo mentira, que estou tendo um pesadelo porque assisto muitos filmes, como diria minha mãe. Daria tudo para ouvi-la gritando daquela maneira irônica mais uma vez, embora eu saiba que é impossível. Pego algumas mudas de roupa, todos os livros que consigo carregar, um caderno muito especial para mim e meu estojo. Refaço meu caminho até a entrada da casa e tranco a porta de volta, pensando com melancolia em como isso parece ser uma despedida.
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Sombras da Luz (Pausada)
RomanceBelle sempre acreditou que sua vida era pacata, na melhor das hipóteses, mesmo sendo filha de uma médica e de um enfermeiro que passavam o dia inteiro fora de casa. Até que os dois morreram. Sem um aviso, um adeus, um mais ou um menos ou o que quer...