Capítulo 4

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Fico plantada na escada bifurcada por alguns segundos. O que diabos acabou de acontecer? Que tipo de pessoa salva alguém e simplesmente a abandona, sem ao menos um "você está bem?", pior ainda, com um olhar daqueles?

Caminho pisando duro até chegar na cozinha, ignorando meu medo da besta e danto total atenção ao meu estômago, que ronca quase como um porco. Entro discretamente e uma mulher que aparenta estar na casa dos quarenta e alguns vem me servir. Adorei ela. Ela e todos os outros empregados que vieram falar comigo pareciam felizes pela minha presença, como se fizesse anos que eles não viam uma cara nova. Ninguém perguntou sobre meus pais ou como minha vida era antes de me mudar para cá, acho que descobriram que no meu primeiro dia aqui meu psicológico não estava em seu melhor estado. Ao invés disso, conversamos sobre suas vidas pessoais, filhos e filhas, maridos e esposas. Acho que foi a primeira vez que um sorriso não forçado apareceu no meu rosto desde que meus pais morreram.

Mas toda coisa boa vem seguida por algo ruim, e vice versa. Havia começado uma conversa com Margot, a senhorinha que me serviu, sobre o que mais gostamos de ouvir em se tratando de música clássica, Mozard ou Beethoven, e sobre o meu recente amor por violoncelo quando Stelly apareceu furiosa comigo.

- O que você estava pensando?! - Ela gritou do outro lado da cozinha. - Não consegue simplesmente ficar quieta no seu quarto?

Eu estava prestes a responder, mas Margot interviu.

- Stelly, o que está acontecendo?

A reptiliana apontou o dedo para mim de um jeito que fez parecer que ela queria enfiá-lo na minha garganta até eu morrer engasgada.

- O problema é que essa garota é uma irresponsável que acha que o mundo gira ao seu redor! - Seus olhos parecem maiores e ela aparenta estar pronta para voar em mim.

Se eu tivesse menos amor pela vida, teria a respondido, mas eu já a irritei o suficiente para que ela me trancasse no quarto, o que seria de mim se eu a irritasse ainda mais?

- Stelly, chega! Belle veio morar aqui por causa de uma situação ruim e extremamente delicada, devemos tratá-la como uma convidada, não como uma prisioneira, pelo amor de Deus!

- Um prisioneira não incomoda quem não devia incomodar, muito menos perambula por onde não deve perambular.

Congelo. Será que ela viu?

Imediatamente, Margot se calou, sequer me lançou um olhar de esguelha. A tensão que pairou no ar é visível e quase palpável.

Não protestei quando Stelly me arrastou de volta ao quarto, não disse nada quando ela começou a falar sobre o quanto é importante que eu siga as regras da casa - como se eu tivesse infringido-as por vontade própria -, que Adam Beamont é um homem que não tem tempo nem para si mesmo, imagina só se tem para gastar com uma qualquerzinha como eu, que ele é um homem de negócios extremamente ocupado e o que eu espero ganhar dele? Consolo? Acolhimento? Eu sou uma estúpida por pensar algo assim porque existem milhares, para se dizer o mínimo, de outras pessoas que também perderam os pais, mas elas não ficam que nem eu, não, não, elas lutam e superam, aprendem a conviver com isso porque sabem que não há nada que faça essa situação mudar.

E depois ela tem a cara e a coragem de dizer que não ia perder tempo nem gastar a voz me dando sermão. Preciso, desesperadamente, conter minha vontade de erguer a voz e respondê-la a altura, mesmo que ela esteja merecendo. Não estou mais na minha casa e não me sinto completamente no direito de abusar da minha ousadia.

Já estava considerando empurrá-la pela sacada quando ela finalmente saiu e trancou a porta do meu quarto. Sozinha, mais uma vez. Suspiro.

Faz muito tempo que estou na cama, lendo alguns contos de Edgar Allan Poe e tentando escrever um ou outro, quando ouço passos calmos e quase que despreocupados, que parecem parar na frente da minha porta. Estranho, crispo os olhos. Uma chave desliza por baixo dela. Olho-a curiosa enquanto a pessoa retoma seu caminho. Uma chave comum, ou seja, definitivamente é de uma porta. Arqueio uma sobrancelha, só pode ser...

Sombras da Luz (Pausada)Onde histórias criam vida. Descubra agora