Às duas da tarde, famintos e cansados (e ranzinzas por causa da fome e do cansaço), os garotos decidiram parar um momento com a limpeza. O mais velho, que sabia cozinhar e gabava-se de sua habilidade, aprontou um desjejum ralo e insosso: um guisado aguado com os restos da carne de porco, cebolas e cenouras picadas, sem sal. A maior parte do que tinham na despensa estavam guardando para o banquete à noite, especialmente um gordo lombo de gamo e os temperos mais caros, exóticos e saborosos, como gengibre e pimenta-do-oriente.
– Ah, detesto água – esbravejou Seth. – É tão... sem graça. Não podemos abrir uma garrafa de vinho da adega, maninho?
– Só há uma sobrando. Melhor poupá-la para a festa de hoje à noite. Você sabe que Mestre Paetros adora um belo vinho envelhecido. O nosso deve ter uns vinte anos, creio.
– Bobagem – contestou o mais novo prontamente, balançando a colher em negativa. – O Mestre gosta de qualquer bebida forte. E acredito que prefere cerveja.
– Por que pensa assim?
– Ora, não lembra? – estacou Seth, corando de leve ao concluir que haveria de relatar algo embaraçoso. – Uma vez ele nos contou que voluntariamente tinha se trancafiado no porão de uma taverna em Tiberia durante uma madrugada inteira e, segundo ele, esse fora o melhor cárcere que já tinha frequentado.
– Sim, sim, lembro agora – gargalhou Berek. – Quando o taverneiro o descobriu e o pôs para fora aos pontapés, dois barris de cerveja já estavam vazios, e umas três garrafas se perderam.
– É, mas estas se espatifaram (isso sim), porque arremessadas contra o Mestre quando ele tentava se explicar. E nenhuma o acertou... Então, podemos abrir o vinho? – insistiu, torcendo pela aprovação do mais velho.
– Não. – “Ponto”, e amarrou a cara. A conversa terminara.
Após o falecimento de Thebo e Ddiäna, Marco Paetros convertera-se em guardião e mentor dos garotos. Ainda que boêmio e detentor de uma pança generosa, provara merecer o título de Mestre. Era inteligente, dava mostras de conhecer tudo e mais um tanto, visto que se educara nas searas do espírito, do intelecto e do corpo. Os movimentos sempre acurados e o olhar examinador inspiravam uma sensação acolhedora de segurança. Era como se estivesse pronto para qualquer desafio e como se estivesse a par do que se passava no sul ao mirar o norte. Os discípulos receavam não ser capazes de ocultar nada de seu sobrolho constantemente carregado, logo não ousavam mentir-lhe. Desconfiavam sinceramente que o Mestre podia ler-lhes os corações com a mesma facilidade de quem lê inscrições gravadas a fogo em ferro.
Personificava aquele tipo de professor que gosta de ensinar. Ao ministrar suas lições, exalava certo ar paternal: era atencioso e compreensivo, porém rígido, se necessário. Doutrinara os pupilos sobre a vida e o mundo, sobre ética e guerra, sobre filosofia e ciências da natureza, sobre história e lógica matemática, sobre etiqueta e sobrevivência no ermo. Por quatro anos habitara a casa de Berek e Seth e, depois, quando os considerara maduros e aptos a cuidarem de si próprios, ele se fora para o leste. – Tenho negócios importantes para resolver. Vocês ficarão bem sem mim – dissera ao despedir-se. – Pelo céu e pela terra, não me lancem esses olhos de coelho na armadilha. Não os estou abandonando. Juro que retornarei para vê-los sempre que puder.
Por mais que o houvessem perturbado com interrogatórios, os jovens não haviam desvendado do que esses “negócios” tratavam exatamente. Na verdade pouquíssimo sabiam sobre o Mestre: quanto mais lhe perguntavam, mais ele se fechava. De sua identidade possuíam apenas o nome, se é que Marco Paetros era de fato o verdadeiro. E tinham dúvidas sobre sua amizade com o pai deles, já que, quando lhe pediam para comentar o assunto, ele retrucava: – Agora não é o momento adequado. Por ora se preocupem com seus estudos – e o “momento adequado” nunca chegava.