Seth não aguardou o desfecho da história. Ele e Lao passaram pelo trio e prosseguiram rumo aos bastidores da ruela. Uma tocha queimava adiante. Iluminava a placa dependurada acima da porta de uma casa sem janelas na fachada, apresentando os dizeres em verde: “ARMAZÉM DO SR. CAHTÓRIS. De tudo um pouco: de tesouro de dragão a leite de vaca (e vice-versa)”. Eis uma piada infame para um cenário infame. Não obstante era melhor do que nada, algo para apimentar o insosso título da loja, a contrastar com, junto à Avenida Leste-Oeste, a “Quintal d’Icintareo: móveis finos e raras antiguidades” ou o bar “Solidouro: festeje desde o nascer do Sol e não fique solitário à noite” (e obviamente todos os passantes entendiam que Solidouro derivava de “Sol de ouro”, além do trocadilho entre Solidouro e solidão, sem comentar que vários dos fregueses advinham justamente do letreiro, arrebatados por sua incomparável, incompreensível criatividade – ou pelo menos assim deviam presumir os taverneiros).
Apressado, o semielfo adentrou no estabelecimento, ao tímido badalar da sineta que avisou de sua chegada. Lao ficara do lado de fora como de costume, porque Seth bem sabia que o Sr. Cahtóris não tolerava animais pisando seu impecável assoalho, varrido seis vezes por decana, quatro vezes enxaguado e duas vezes encerado.
– Bem-vindo – saudou uma voz ressequida, desgastada pelas décadas. Um homenzinho franzino, moreno, de longos bigodes oleados já brancos até a raiz (duas lanças envergadas em L que, rígidas, apontavam para baixo, emoldurando o fino pescoço), debruçava-se sobre um envernizado balcão, à direita, e espichava a vista tentando identificar o cliente. – Ah, jovem Seth – concluiu enfim, adiantando-se para recebê-lo.
– Olá, Sr. Cahtóris.
– Já fazia tanto tempo que o pequeno mestre não me vinha visitar que passei a crer que tinha encontrado um vendedor melhor – brincou o comerciante. Estampava no rosto um vasto sorriso, a exibir sua arcada incompleta, com dois dentes substituídos por próteses de prata. – Mas peço desculpas. Fui injusto ao desconfiar de sua lealdade – fez uma reverência extravagante, pincelando o chão com a ponta do bigode. Durante o movimento, o comprido capuz vermelho que usava (e que jamais tirava da cabeça) pendeu para frente, porém não caiu: estava bem preso à careca do velho, cobrindo-lhe orelhas e sobrancelhas. O guiso de ouro na extremidade do gorro balançou em melodia.
Seth sempre achara bizarro alguém proteger-se tanto em plena Haure’ärna. Só de olhar para o Sr. Cahtóris, mesmo estando sob um telhado que bloqueava o Sol forte, incomodou-se bastante e começou a transpirar de novo. Ora, mas ele próprio tinha suas manias também... Afinal, quem mais trajaria capa e capuz pretos naquele calor? Bem, a única boa razão que justificava tamanha loucura tinha de permanecer oculta. E talvez o vendedor estivesse numa situação semelhante. Ou teria todo aquele pano a simples função de esconder a calvície? Ou mais tolo ainda: talvez o capuz apenas servisse de acessório para a extravagante noção de moda de um comerciante bem-sucedido.
Mas fosse o que fosse o menino não tinha tempo para especulações tão desimportantes. Levara mais do que os quarenta minutos de hábito para alcançar Tiberia, possivelmente mais do que uma hora e meia. E desde a Noite do Luar Escarlate os dias encurtavam-se num ritmo crescente – ou era o que rumorejavam os mais impressionáveis. Contava-se que o mais cedo pôr do Sol já testemunhado no continente ocorrera às quatro da tarde, na segunda decana do último Hima’gnnön[1]. Todo inverno era igual, diziam uns, com breves e preciosas horas de luz. Mas outros afirmavam que naquele inverno, o mais recente, houvera algo de especial: o frio mais frio, o escuro mais escuro. Ademais, ninguém ousava negar que, nos dias que corriam, Häurea vinha desaparecendo antes das cinco e meia. Visto que saíra de casa aproximadamente às três horas, Seth não dispunha de muito tempo sobrando até que anoitecesse e cerrassem os portões da cidade.