IV.1 - Fuga honrosa

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Dum... Dum... DUM! Investidas ritmadas contra a madeira. DUM... DUM! Encontravam vigorosa resistência, de sorte que a labuta de aríete humano teria de prosseguir indefinidamente. DUM! Entrecortados, distinguiam-se lamúrias e gemidos. DUM! E rangiam dobradiças de ferro. DUM! Alguém praguejava com uma voz embargada, em meio a interrupções em que parecia cuspir. DUM!

BLAM! Enfim a porta desabou, mas nenhuma poeira soergueu-se em resposta. O armazém do Sr. Cahtóris era simplesmente limpo demais... O baque fez tremer a sineta da entrada, e às quase inaudíveis boas-vindas sobrepujou-se o esbravejar de Ulderik:

– SÓ AGORA DECIDEM APARECER, MOLENGAS?! Droga... Agora é tarde. O garoto escapou – escarrou sangue mais uma vez, asseando depois a boca e o queixo na gola da camisa.

Como estacas, os recém-chegados fincavam os pés sobre a porta tombada. Imponentes estátuas banhadas em bronze. Uma cota escamada e tosca recobria-lhes o corpo, desde a cabeça; portavam botas e luvas pesadas, de um metal sem lustro; cimitarra e besta às costas; no peito, na túnica castanha, a estampa da pata de urso negra, o símbolo de Tiberia[1]. Os olhos e face de ambos denunciavam uma inexpressividade digna da férrea disciplina com que haviam sido adestrados. Sob aquela armadura, no entanto, exalavam um ar de severa autoridade. Talvez devessem isso às feridas no orgulho de sua ordem, brotadas do incidente do semielfo fugido. Não tolerariam o desacato nem sequer permitiriam a fuga de um segundo pivetinho desgraçado.

– O que disse, insolente? – murmurou um dos guardas, estreitando as pálpebras em desaprovação.

– Você... ouviu... b-bem... – arfou o homem; o sangue que lhe abundava da boca incitava ânsia de engasgo. – O maldito... fugiu... vocês demoraram...

– Fugiu, é? – O outro guarda esboçou um risinho desdenhoso. – Você disse que o semielfo era um garoto. Um garoto. É verdade então que vocês deixaram um pirralho escapar?! Aí topamos com os dois mais esculachados do que se tivessem enfrentado um grupo de rufiões armados até os dentes! Não venham nos censurar, pois a escória aqui, na falta do semielfo, é composta por vocês, e apenas por vocês.

A voz do segundo espadachim variava entre o tenor e o contralto; demasiado fina, prejudicava o potencial respeito que ele supunha inspirar. Entretanto acertara em sua observação: qualquer um, se ignorante acerca das circunstâncias e eventos ali desenrolados, julgaria ter ocorrido um massacre no outrora impecavelmente tranquilo armazém. Essa impressão se provaria adequada, não fosse o tom levemente desproporcional da palavra massacre. O ideal seria argumentar que houve, de um lado, incompetência e prepotência e, de outro, sagacidade e oportunidade.

– Basta! – vociferou Goethig, que com uma das cordas designada a Seth procurava estancar o sangramento da perna. Parecia mais do que disposto a assumir o comando do debate, agora que seu parceiro estava batido e impossibilitado de lançar suas tiradas geniais. – Faz menos de três minutos que o vermezinho pulou janela afora. Não deve ter ido longe, porque o algemamos e o despimos da capa que lhe acobertava a repulsiva aparência. Acho que deviam pôr-se em seu encalço, senhores. Afinal, caso se propaguem rumores a respeito de um novo fugitivo, as críticas não recairão sobre nós, escória, mas sobre o tão valoroso brio da Guarda Tiberiense... Quanto mais será que a instituição aguenta antes de ser extinta? – e gargalhou com seu jeito de hiena, que agora se assemelhava bastante a um choramingar disfarçado.

O primeiro guarda dispensou um olhar ainda mais fechado ao gracejo, do que se deduzia ter ele contraído as sobrancelhas, de ira.

– Mal consigo imaginar o porquê de vocês terem trancado a porta – reclamou, ao que Goethig calou-se. – Receavam que o fedelho se espremesse por sob suas pernas e escapulisse pelo buraco da fechadura?! Idiotas! Só nos atrapalharam, imbecis!

Além do Sol e da LuaWhere stories live. Discover now