O Sr. Cahtóris retornou rápido, carregando uma bandeja repleta de guloseimas. Pousou-a sobre uma riquíssima mesa de centro de bordas e pernas marmóreas, cujo centro ostentava um mosaico de vidro. Humilhante contraste: a travessa era de reles madeira. Embora o estômago ameaçasse roncar diante da refeição, o semielfo não via meios de postergar aquela questão fundamental. “Nem diante desse maravilhoso bolo coberto de especiarias”, e abriu a boca para interrogar.
Todavia o vendedor já se fora outra vez, para logo regressar com uma chaleira desgastada. Pendurou-a sobre o fogo da lareira, mas o metal corroído não reluziu. Num armário apanhou duas xícaras de uma delicada porcelana e sentou-se em sua poltrona.
– Vamos, jovem Seth, coma. Não se acanhe.
– Sr. Cahtóris... – começou sério.
– Hum?
“... como o senhor sabe de meu encontro com os Cavaleiros?” Não. Essa era a questão-chave, mas ainda não era hora de propô-la. E se tivesse se enganado a respeito? E se o negociante desconhecesse por completo o incidente envolvendo Hidëo e Atröxis? O menino tendia a afobar-se em suas conclusões, captando conexões entre eventos desconexos, e descobrindo significados ocultos onde só havia coincidências. Culpa de uma imaginação desenfreada. E culpa da desconfiança. Porque se o Sr. Cahtóris soubesse de algo ou de tudo, o semielfo achava que detestaria a resposta para por que ou como ele sabia o que sabia... “Usarei de sutileza, do mesmo jeito que ele.” E lançou uma pergunta-isca, algo que sempre ansiara por indagar ao Mestre, porém temia que ele o acabasse ridicularizando como ingênuo ou impertinente:
– ... a única diferença- a única diferença visível que percebo entre os homens e os semielfos é, bem, o tamanho das orelhas. As minhas são longas e pontudas, como as dos elfos. Sei que a gente élfica vive por séculos e séculos, para todo o sempre, sei que não morre de velhice, pois o vigor de seus espíritos e corpos dura pela eternidade. Mas essa característica não é distinguível aos olhos, e de resto elfos e semielfos são muito semelhantes, não é mesmo? Então como não confundir os dois? Quero dizer, é verdade que ouço afirmarem terem os elfos uma beleza quase sobrenatural, mas apenas isso não me parece suficiente. Por que me aconselham a proteger-me com capa e sombra, se pelo que me consta eu poderia fazer as vezes de uma criança élfica de sangue puro?
O comerciante ponderou:
– Se todos partilhassem um pingo de sua inocência, os grandes problemas de nossa era chegariam ao fim. – E o entusiasmo de Seth murchou. “Ele me toma por tolo, assim como o Mestre faria.” Mas o outro continuou: – Com efeito, as diferenças são tão insignificantes que me pego às vezes sem compreender toda essa algazarra instaurada ao redor dos semielfos. De qualquer modo, você me fez uma pergunta e hei de responder-lhe da melhor forma que me é possível. Previno-o de que a resposta será assaz elaborada, portanto não se sinta inibido de comer enquanto explico.
O menino aquiesceu.
– Pois bem. Em primeiro lugar, no tocante às orelhas de elfos e semielfos: pela maneira como se expressou, me pareceu que se referia aos cervos com suas galhadas ou aos chifrudos bodes montanheses, e não a pessoas.
O garoto mastigava com gosto um pedaço de pão lambuzado de geleia de cereja e engasgou ante a troça. Contudo, não prevendo tal humor por parte do velho, recompôs a austeridade:
– Desculpe-me, senhor, não foi minha intenção. – Ele ergueu o olhar para encarar o rosto moreno e de poucas rugas, os bigodes delineando o sorriso brincalhão. “Ora, ora, apesar de beber chá, ele não é de todo chato.” Que bom, uma vez que a caricatura forjada em seu imaginário – do Cavaleiro élfico Atröxis com brotos de galhos à careca resplandecente, a saltitar pela campina em harmonia com os amiguinhos veados – era tudo, menos passageira.